Ley de Medios: Câmara censura Comparato
Publicado no blog "Conversa Afiada" de Paulo H. Amorim
Este ansioso blogueiro recebeu o seguinte e-mail do professor Comparato:
Caro amigo:
A Deputada Luiza Erundina, após muita
insistência junto à Comissão de Ciência, Tecnologia, Informática e
Comunicação da Câmara dos Deputados, conseguiu que esta convocasse uma
audiência pública para a discussão do escandaloso arrendamento de
concessões de rádio e televisão no país. A Deputada teve, no entanto, a
imprudência de me indicar para participar dessa audiência.
Bem, a
citada Comissão começou enviando-me uma mensagem, na qual informava
que, em conformidade com o procedimento habitual da Casa, eu deveria
pagar minha passagem para Brasília. Diante dos protestos da Deputada
Luiza Erundina, o presidente da Comissão acabou fazendo uma exceção, e
concordou em pagar minha ida à capital federal.
Hoje, sem
surpresa nenhuma de minha parte, um funcionário da Comissão me telefonou
para informar que a audiência pública havia sido cancelada (obviamente,
por razões de necessidade ou utilidade pública…).
Segue de qualquer forma, como anexo, o texto da palestra que iria proferir na citada audiência pública.
Abraço,
Fábio Konder Comparato
COMUNICAÇÃO SOCIAL NO BRASIL: O DIREITO E O AVESSO
Fábio Konder Comparato*
“– Bem sei, mas a lei?
– Ora, a lei… o que é a lei, se o Senhor major quiser?…
O major sorriu-se com cândida modéstia.”
MANOEL ANTONIO DE ALMEIDA, Memórias de um Sargento de Milícias.
No conto O Espelho, de Machado de
Assis, o narrador assevera a seus ouvintes espantados que cada um de nós
possui duas almas. Uma exterior, que exibimos aos outros, e com a qual
nos julgamos a nós mesmos de fora para dentro. Outra interior, raramente
exposta aos olhares externos, que nos permite julgar o mundo e a nós
mesmos, de dentro para fora.
Importa reconhecer que essa
duplicidade, no exato sentido de algo dobrado ou dissimulado, tal como a
metáfora do conto machadiano, encontra-se tanto em nosso caráter,
quanto em nossa organização político-econômica.
É inegável que o caráter brasileiro
contém um elemento de dissimulação constante nas relações sociais. Nossa
afabilidade de maneiras, tão elogiada pelos estrangeiros, dissimula com
frequência sentimentos de desinteresse e desprezo.
Já em matéria de organização
político-econômica, sempre tivemos, desde a Independência, um duplo
esquema institucional. Há, de um lado, o direito oficial, que é a nossa
alma exterior exibida ao mundo. Mas há também, no foro interior de
nossas fronteiras, um direito oculto, que acaba sempre por prevalecer
sobre o direito oficial, quando este se choca com os interesses dos
poderosos.
Creio que o exemplo mais conspícuo dessa duplicidade institucional ocorre nos meios de comunicação de massa.
A maioria das normas sobre a matéria,
constantes da Constituição de 1988, é certamente de bom nível. Acontece,
porém, que quase todas elas ainda carecem de regulamentação
legislativa, vinte e três anos após a promulgação da Carta
Constitucional. São armas descarregadas.
Como se isso não bastasse, em decisão
de abril de 2009 o Supremo Tribunal Federal julgou que a lei de imprensa
de 1967 havia sido tacitamente revogada com a entrada em vigor da
Constituição de 1988. Ora, nessa lei de imprensa, como em todas as que a
precederam, regulamentava-se o exercício do direito de resposta,
inscrito no art. 5º, inciso V da Constituição. Em conseqüência, esse
direito fundamental tornou-se singularmente enfraquecido.
Como bem lembrou Lacordaire na França
no século XIX, numa época em que a burguesia montante já impunha a
política de desregulamentação legislativa de todas as atividades
privadas, “entre o rico e o pobre, entre o forte e o fraco, é a lei que
liberta e é a liberdade que oprime”. De que serve, afinal, uma
Constituição, cujas normas não podem ser aplicadas pela ausência de leis
regulamentares? Ela existe, segundo a clássica expressão francesa, como
trompe l’oeil, mera ilusão pictórica da realidade.
Inconformado com essa negligência
indesculpável do órgão do Poder Legislativo – negligência que, após mais
de duas décadas da entrada em vigor da Constituição, configura uma
autêntica recusa de legislar – procurei duas entidades, que são partes
constitucionalmente legítimas para propor ações dessa espécie: o PSOL e a
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade.
Elas aceitaram ingressar como demandantes perante o Supremo Tribunal
Federal, onde tais ações foram registradas como ADO nº 9 e ADO nº 10.
Qual não foi, porém, meu desencanto
quando, intimados a se pronunciar nesses processos, tanto a Câmara dos
Deputados, quanto o Senado Federal, tiveram a audácia de declarar que
não havia omissão legislativa alguma nessa matéria, pois tudo
transcorria como previsto no figurino constitucional!
Acontece que, para cumular o absurdo, a
duplicidade no campo da comunicação social não se reduz apenas ao
apontado descompasso entre a Constituição e as leis.
Se considerarmos em particular o
estatuto da imprensa, do rádio e da televisão, encontraremos o mesmo
defeito: o direito oficial é afastado na prática, deixando o espaço
livre para a vigência de um direito não declarado, protetor dos
poderosos.
A Constituição proíbe ao Poder Público
censurar as matérias divulgadas pelos meios de comunicação de massa. Mas
os controladores das empresas que os exploram, estes, são livres de não
divulgar ou de deformar os fatos que contrariem seus interesses de
classe.
Como não cessa de repetir Mino Carta,
este é o único país em que os donos da grande imprensa, do rádio ou da
televisão fazem questão de se dizer colegas dos jornalistas seus
empregados, embora jamais abram mão de seu estatuto de cidadãos
superiores ao comum dos mortais.
Cito, a propósito, apenas um exemplo.
Em fevereiro de 2009, o jornal Folha de S.Paulo afirmou em editorial que
o regime empresarial-militar, que havia assassinado centenas de
opositores políticos e torturado milhares de presos, entre 1964 e 1985,
havia sido uma “ditabranda”. Enviei, então, ao jornal uma carta de
protesto, salientando a responsabilidade do diretor de redação por
aprovar essa opinião ofensiva à dignidade dos que haviam sido
torturados, e dos familiares dos mortos e desaparecidos. O jornal
publicou minha carta, acrescida de uma nota do diretor de redação, na
qual eu era gentilmente qualificado de “cínico e mentiroso”. Revoltado,
ingressei com uma ação judicial de danos morais, quando tinha todo o
direito de apresentar queixa-crime de injúria. Pois bem, minha ação foi
julgada improcedente, em primeira e em segunda instâncias. Imagine-se
agora o que teria acontecido se as posições fossem invertidas, ou seja,
se eu tivesse tido o destrambelho de insultar publicamente o diretor de
redação daquele jornal, chamando-o de cínico e mentiroso!
A lição do episódio é óbvia: a
Constituição reza que todos são iguais perante a lei; no mundo dos
fatos, porém, há sempre alguns mais iguais do que os outros.
Vejamos, agora, nesse quadro institucional dúplice, o funcionamento dos órgãos de rádio e televisão.
Dispõe o art. 21, inciso XII, alínea a,
que “compete à União explorar diretamente ou mediante autorização,
concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e
imagens”.
No quadro constitucional brasileiro,
por conseguinte, a exploração dessas atividades constitui um serviço
público; isto é, no sentido original e técnico da expressão, um serviço
prestado ao povo. E a razão disso é óbvia: as transmissões de
radiodifusão sonora ou de sons e imagens são feitas através de um espaço
público, isto é, de um espaço pertencente ao povo. Escusa lembrar que,
como todo bem público, tal espaço não pode ser objeto de apropriação
privada.
Da disposição constitucional que dá à
radiodifusão sonora e da difusão de sons e imagens a natureza de serviço
público decorrem dois princípios fundamentais.
Em primeiro lugar, o Estado tem o dever
indeclinável de prestá-lo; e toda concessão ou permissão para que
particulares exerçam esse serviço é mera delegação do Poder Público.
Assim dispôs, aliás, a Lei nº 8.987, de 1995, que regulamentou o art.
175 da Constituição Federal para as concessões de serviços públicos em
geral.
Em segundo lugar, na prestação de um
serviço público, a realização do bem comum do povo não pode
subordinar-se às conveniências ou aos interesses próprios daqueles que
os exercem, quer se trate de particulares, quer da própria organização
estatal (em razão de economia orçamentária, por exemplo).
Ora, neste país, desde o início do
regime empresarial-militar em 1964, ou seja, antes mesmo da difusão
mundial do neoliberalismo capitalista nas duas últimas décadas do século
passado, instaurou-se o regime da privatização dos serviços de rádio e
televisão. A presidência da República escolheu um certo número de
apaniguados, aos quais outorgou, sem licitação, concessões de rádio e
televisão. Todo o setor passou, assim, a ser controlado por um
oligopólio empresarial, que atua não segundo as exigências do bem comum,
mas buscando, conjuntamente, a realização de lucros e o exercício do
poder econômico, tanto no mercado quanto junto aos Poderes Públicos.
Ainda hoje, todas as renovações de
concessão de rádio e televisão são feitas sem licitação. Quem ganha a
primeira concessão torna-se “dono” do correspondente espaço público.
A aparente justificação para esse abuso
é a norma mal intencionada do art. 223, § 2º da Constituição, segundo a
qual “a não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação
de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal”.
Basta, porém, um minuto de reflexão para perceber que esse dispositivo
não tem o efeito de suprimir a exigência de ordem pública, firmada no
art. 175, segundo a qual todas as concessões ou permissões de serviço
público serão realizadas mediante licitação.
Outra nefasta consequência dessa
privatização dos serviços públicos de rádio e televisão entre nós, é que
as autoridades públicas, notadamente o Congresso Nacional, decidiram
fechar os olhos à difundida prática negocial de arrendamento das
concessões de rádio e televisão, como se elas pudessem ser objeto de
transações mercantis. Ora, tais arrendamentos, muitas vezes, dada a sua
ilimitada extensão, configuram autênticas subconcessões de serviço
público, realizadas com o consentimento tácito do Poder concedente.
Será ainda preciso repetir que os
concessionários ou permissionários de serviço público atuam em nome e
por conta do Estado, e não podem, portanto, nessa qualidade, buscar a
realização de lucros, preterindo o serviço ao povo? O mais chocante, na
verdade, é que o Ministério Público permanece omisso diante dessa
afrontosa violação de normas constitucionais imperativas.
Sem dúvida, o direito brasileiro (Lei
nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26) admite é a subconcessão de serviço
público, mas desde que prevista no contrato de concessão e expressamente
autorizada pelo poder concedente. A transferência da concessão sem
prévia anuência do poder concedente implica a caducidade da concessão
(mesma lei, art. 27).
Mesmo em tais condições, uma grande
autoridade na matéria, o Professor Celso Antonio Bandeira de Mello,
enxerga nesse permissivo legal da subconcessão de serviço público uma
flagrante inconstitucionalidade, pelo fato de burlar a exigência de
licitação administrativa (Constituição Federal, art. 175) e desrespeitar
com isso o princípio da isonomia.
Para se ter uma idéia da ampla
mercantilização do serviço público de televisão entre nós, considerem-se
os seguintes dados de arrendamento de concessões, somente no Estado de
São Paulo:
BANDEIRANTES: 24 horas e 35 minutos por semana (tempo estimado)
2a a 6a feira
5h45 – 6h45 (Religioso I)
20h55 – 21h20 (Show da Fé)
2h35 (Religioso II)
Sábado e domingo
5h45 – 7h (Religioso III)
4h (Religioso IV)
REDE TV!: 30 horas e 25 minutos por semana (tempo estimado)
Domingo
6h – 8h – Programa Ultrafarma
8h – 10h – Igreja Mundial do Poder de Deus
10h – 11h – Ultrafarma Médicos de Corpos e Alma
16h45 – 17h – Programa Parceria5
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
2a e 3ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
1h55 – 3h – Programa Nestlé
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
4a feira
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
5a e 6ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
Sábado
7h15 – 7h45 – Igreja Mundial do Poder de Deus
7h45 – 8h – Tempo de Avivamento
8h – 8h15 – Apeoesp – São Paulo
8h15 – 8h45 – Igreja Presbiteriana Verdade e Vida
8h45 – 10h30 – Vitória em Cristo
10h30 – 11h – Igreja Pentecostal
11h – 11h15 – Vitória em Cristo 2
12h – 12h30 – Assembléia de Deus do Brasileiro
12h30 – 13h30 – Programa Ultrafama
2h – 2h30 – Programa Igreja Bola de Neve
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
TV GAZETA: 37 horas e 5 minutos por semana
2a a 6ª feiras
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
1h – 2h – Polishop
Sábado
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
23h – 2h – Polishop
Domingo
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
8h – 8h30 – Encontro com Cristo
14h – 20h – Polishop
0h – 2h – Polishop
A lição a se tirar dessa triste
realidade é bem clara: os meios de comunicação social, neste país,
permanecem alheios aos princípios e regras constitucionais.
Para a correção desse insuportável desvio, é indispensável e urgente tomar três providências básicas.
Em primeiro lugar, impõe-se, na
renovação das concessões ou permissões do serviço de radiodifusão
sonora, ou de sons e imagens, cumprir o dispositivo de ordem pública do
art. 175 da Constituição Federal, que exige a licitação pública.
Em segundo lugar, é preciso pôr cobro à escandalosa prática de arrendamento de concessões de rádio e televisão.
Em terceiro lugar, como foi argüido nas
ações de inconstitucionalidade por omissão, acima mencionadas, é
urgente fazer com que o Congresso Nacional rompa a sua prolongada mora
em cumprir o dever constitucional de dar efetividade aos vários
dispositivos da Constituição Federal carentes de regulamentação
legislativa, a saber:
1)O art. 5º, inciso V, sobre o direito de resposta;
2)O art. 220, § 3º, inciso II, quanto
aos “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de
se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que
contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos,
práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente;
3)O art. 220, § 5º, que proíbe sejam os meios de comunicação social, direta ou indiretamente, objeto de monopólio ou oligopólio;
4)O art. 221 submete a produção e
programação das emissoras de rádio e televisão aos princípios de: “I –
preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e
informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à
produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização
da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais
estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da
pessoa e da família”.
É o mínimo que se espera nessa matéria
dos nossos Poderes Públicos, como demonstração de respeito à dignidade
do povo brasileiro.
Brasília, 22 de novembro de 2011.
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