“Ninguém vive bem em São Paulo. Nem os pobres nem os ricos.” Esta é a fala de quem conhece de perto os problemas da megalópole. E não acredita nas soluções miraculosas das campanhas eleitorais. “Esta cidade precisa ser pensada em escalas de tempo de 20 anos ou mais”, afirma.
por Maíra Kubík Mano
Há 20 anos, a paraibana Luiza Erundina foi eleita prefeita de São Paulo. Essa militante política sui generis, que iniciou sua atuação nas ligas camponesas, imprimiu ao mandato as marcas da honradez e do compromisso com as grandes reivindicações sociais. O tempo passou. A população cresceu. E a gigantesca megalópole se encontra hoje à beira do colapso. Para a atual deputada federal (eleita pelo PSB, Partido Socialista Brasileiro), a resposta continua a ser um governo que olhe para o futuro. Em uma escala de tempo que vá muito além dos quatro anos de gestão.
Esta será a primeira eleição, desde o fim de seu mandato em 1992, em que ela não concorre à Prefeitura. E o faz em prol de um projeto político maior. Com 74 anos, ela acredita estar plantando, mais uma vez, a semente que outras gerações verão germinar.
Diplomatique: Com mais de 11 milhões de habitantes e uma frota de 6 milhões de veículos, São Paulo apresenta diariamente para seus habitantes o desafio da esfinge: “Decifra-me ou te devoro”. Porém, as respostas apresentadas pelos políticos parecem sempre emergenciais, sem qualquer estratégia por trás. A cidade está à deriva?
Luiza Erundina: Não ter planejamento urbano vem sendo o estigma de São Paulo. Precisamos pensar estrategicamente esta megalópole, que hoje dialoga com o país e o mundo de forma caótica, espontânea e partidarizada. Cada novo governo eleito tenta imprimir à cidade a marca de seu partido e tudo fica personalizado, sem coerência, sem continuidade. Questões centrais, como o transporte urbano e o trânsito, por exemplo, deveriam ser resolvidas nos marcos do Plano Diretor, caso se pensasse para além de um governo de quatro anos. Mas os prefeitos parecem presos a um projeto de gestão, não a um projeto de cidade. Isso vale igualmente para a moradia, a educação, a saúde etc. São Paulo é uma cidade que não tem estratégia de desenvolvimento. Esse é um de seus grandes problemas.
Diplomatique: E o que resultou dos sucessivos projetos de gestão?
Erundina: Os grandes túneis, viadutos e vias expressas. São obras caras e com muita visibilidade, além de servirem a interesses nem sempre confessáveis. Com certeza, as moradias populares, as escolas, os hospitais e uma gestão democrática e participativa não ajudam tanto a promover um prefeito. Vamos pensar novamente no caso do trânsito. A quantidade de vias é insuficiente para o número de veículos existentes na cidade. Calcula-se que haja atualmente em São Paulo um automóvel para cada dois habitantes. Ao passo que o transporte coletivo segue há décadas sem investimentos suficientes e sustentáveis. O incentivo que essas obras dão ao transporte individual praticamente inviabiliza a cidade. E as con-seqüências não dizem respeito apenas à locomoção, mas também ao agravamento do problema ambiental, ao estresse, ao mal-estar. Viver nesta cidade tornou-se extremamente desconfortável. São Paulo tem de ser pensada para além de eleições e de governos. Agora, como conseguir isso?
Diplomatique: Este é o problema: parece haver um círculo vicioso que não sabemos como romper. É difícil esperar que o próximo prefeito, seja ele quem for, consiga mudar essa perspectiva, principalmente sem a participação da sociedade civil organizada no governo.
Erundina: Realmente, a falta de mobilização social e participação popular são hoje agravantes concretos. A sociedade civil organizada cumpriu um papel significativo nas décadas de 1970 e 1980, impulsionando o processo de redemocratização do país. Não só em São Paulo, mas no país inteiro, havia importantes segmentos mobilizados, intervindo nas decisões. Isso imprimia uma dinâmica que extrapolava a atuação dos partidos e dos políticos. Foi esse dinamismo social que gerou o PT e elegeu Lula presidente. Hoje, no entanto, temos uma sociedade civil desmobilizada, sem motivação para participar. A cultura política decaiu muito nestes últimos tempos e os partidos contribuíram para seu próprio esvaziamento. Se analisarmos as propostas dos candidatos à próxima eleição, veremos que emerge delas a visão de uma cidade fatiada, com políticas sociais setorizadas que não obedecem a uma lógica de conjunto. Não há um projeto maior que integre todas as medidas, potencializando seus resultados. Essa é uma responsabilidade que deve ser assumida pelos governos que se pretendam democráticos populares e de esquerda. Mudar a forma de fazer política e governar pode ser inclusive um fator de motivação para que se inicie um novo ciclo histórico de acumulação de forças.
Diplomatique: A senhora está dizendo que, ao impulsionarem a redemocratização e eleger Lula, os segmentos mais progressistas da sociedade civil como que exauriram toda a energia acumulada, chegando a um resultado que ficou muito aquém das expectativas?
Erundina: Sim.
Diplomatique: E que essas forças precisariam, como a fênix, renascer das próprias cinzas e iniciar, agora, um novo ciclo de acumulação?
Erundina: É exatamente isso que eu penso. As determinações se impuseram. Quem teve e tem poder real nesses dois governos de Lula? Os mesmos de antes. As forças populares que, direta ou indiretamente, construíram o PT e elegeram Lula não foram capazes de impulsionar sua gestão, nem foram chamadas para atuar como protagonistas nas decisões estratégicas. Com isso, perdemos a grande oportunidade de iniciar um novo processo político – processo em que a ética fosse um pressuposto, não uma virtude. Um governo de fato democrático não existe ainda, e há muitos setores desestimulados. Claro, esse não é um problema apenas do Lula. Muitas coisas aconteceram desde a fundação do PT. Fatores como a globalização impactaram as relações econômicas e a composição social do Brasil. Hoje, a sociedade tem uma cara diferente da que tinha há 20 anos.
Diplomatique: Ao mesmo tempo, as instituições não se atualizaram para responder às novas demandas.
Erundina: Tanto é que a Constituição de 1988 já está se tornando superada e grande parte dela continua sem regulamentação. O sistema político está completamente defasado. E o próprio Estado não tem mais capacidade de acompanhar a dinâmica da sociedade. Isso se reflete de forma muito aguda na questão urbana. O Estatuto das Cidades, por exemplo, aprovado em 2001, tem muitos mecanismos ainda não implementados, como a democratização do acesso à terra para resolver o déficit habitacional.
Diplomatique: Enquanto isso, na região central de São Paulo, há milhares de imóveis desocupados. O Movimento dos Sem Teto do Centro fala em 600 mil domicílios não utilizados. Sabemos que muitos desses prédios têm enormes dívidas de IPTU com a Prefeitura. Eles não poderiam ser desapropriados com a finalidade de reforma urbana?
Erundina: Sim. A região central está hoje subocupada, com uma infra-estrutura urbana ociosa: redes de esgoto, sistemas de transporte, escolas, postos de saúde. É preciso reverter o fluxo de ocupação do espaço urbano para revitalizar essas áreas. Para tanto, edifícios ociosos, em dívida com a Prefeitura, são um estímulo à desapropriação. Há também muitos prédios públicos vazios, que estão emperrados em decisões judiciais e poderiam ser reutilizados. É preciso um programa de aproveitamento desses imóveis que contemple a demanda crescente por moradia popular.
Diplomatique: Mas a senhora acha isso factível? Para quem está fora do jogo, parece evidente. Porém, colocar essa medida em prática talvez não seja tão simples.
Erundina: É factível, sim, mas não como solução apenas local. O município não tem capacidade de ser o principal ator de uma política habitacional que dê conta de toda a demanda. Diminuir o déficit habitacional e o enorme número de favelas, cortiços e pessoas morando nas ruas é também uma questão de emprego e renda. A questão urbana é uma questão social, que deve ser resolvida pelo país de forma conjunta. Não precisamos apenas de um projeto de cidade, mas também de um projeto de nação.
Diplomatique: É possível trazer temas dessa magnitude para o debate eleitoral municipal?
Erundina: Eu acho que um candidato ou um partido que se reivindique de esquerda e queira ocupar um campo diferenciado deve centrar-se não só na questão ética, da honestidade e da transparência, mas também no método de gestão. O que diferencia um governo democrático-popular de outro sem essa vocação é justamente a inversão de prioridades, o investimento no social. Isso pode soar óbvio, mas é a única alternativa para diminuir o fosso entre uma minoria com altíssimo padrão de vida e a larga faixa da sociedade excluída dos serviços e das riquezas produzidas na cidade. Apesar de não enxergar isso, a elite também é prejudicada pela deterioração geral. Ninguém vive bem em São Paulo! Com o aumento da violência, cresceu o número de pessoas que vivem cercadas por muros eletrificados e andam em carros blindados, acompanhadas por escoltas privadas. A situação vem piorando ao longo dos anos. No período em que fui prefeita, tentei aprovar algumas propostas que alterariam essa realidade, como o IPTU progressivo. Os maiores proprietários pagariam mais. Dessa forma, teríamos uma política tributária que funcionaria como mecanismo de distribuição da riqueza, pois o montante arrecadado a mais seria destinado a acabar com o déficit de vagas no ensino fundamental. A proposta, porém, foi fortemente rejeitada, após uma violenta campanha de mídia contra a minha gestão.
Diplomatique: A senhora foi massacrada pela mídia conservadora!
Erundina: Na época, eu respondi que as pessoas contrárias à mudança no imposto preferiam contratar seguranças privados para se proteger dos “trombadinhas” a mandar crianças para a escola. Mas não adiantou. Infelizmente, não há sensibilidade social para entender que uma cidade mais justa é uma cidade melhor para todos. Aumentar a altura dos muros é investir no presente. Educação é investimento no futuro. É uma pena que em São Paulo ainda haja tão pouca solidariedade. Quem quer que se proponha a resolver esses problemas em apenas quatro anos está se iludindo ou iludindo os outros. É preciso pensar a cidade em escalas de tempo de 20 anos ou mais e investir pesadamente nisso. É preciso mudar a cultura política: promover a transparência, favorecer o controle social, estimular a participação popular, aceitar a atuação de um legislativo legítimo que exerça de fato seu papel fiscalizador. Enfim, trata-se de colocar o poder público a serviço dos interesses públicos.
Diplomatique: Tudo isso desemboca na questão da cidadania, de as pessoas se assumirem como atores da história.
Erundina: Continuamos presos a uma concepção política muito atrasada, repleta de projetos personalistas. A mídia, pelo menos grande parte dela, também não cumpre seu papel. Pelo contrário, é alienante. A juventude está desorientada por padrões consumistas e violentos. E o que dizer da absurda desigualdade de renda? Trata-se de um problema de fundo. Precisamos construir um projeto político de longo prazo ou a tendência é que tudo isso se agrave. Claro, não temos perspectivas de mudanças imediatas, mas a história dá saltos. Durante a ditadura militar, tínhamos a sensação de estar em um beco sem saída. No entanto, o processo histórico-social foi se gestando nos bastidores, nas entranhas da sociedade. E, de repente, as coisas aconteceram! É por isso que temos de acreditar. Eu já dimensionei minhas expectativas não pelo meu tempo de vida, porque não vou ver concretizado aquilo por que lutei, mas pela perspectiva histórica. A história se faz em séculos.
Diplomatique: Na perspectiva do século, deste século, talvez o nosso maior desafio seja a dimensão extremamente crítica assumida pelos problemas ambientais. São Paulo convive há décadas com a poluição atmosférica, a ocupação de áreas de mananciais e outras agressões ao meio ambiente. É possível pensar em alguma ação eficaz no âmbito da gestão municipal?
Erundina: A situação ambiental em São Paulo é gravíssima. Durante o meu governo, São Paulo tinha 9,5 milhões de habitantes. Hoje, são mais de 11 milhões – 20 milhões se contarmos a região metropolitana. Há uma conurbação generalizada. E, se as fronteiras são artificiais, é necessário um planejamento em escala mais ampla, que envolva todos os municípios do entorno. Nosso ordenamento institucional privilegia as esferas do município e do estado. Mas os problemas ambientais – como também os relativos aos transportes, à segurança e outros – extrapolam a esfera do município. No entanto, a Constituição de 1988 não confere às regiões metropolitanas um real poder de planejamento. Em vez da sinergia de recursos e ações, o que existe é a competição entre os governos dos diferentes municípios que integram a região metropolitana – competição ditada por mesquinhas disputas partidárias e eleitorais. É uma irracionalidade gritante. Houve uma expe-riência de consórcio intermunicipal para a gestão da água. Mas não foi muito longe. É preciso trazer o planejamento das regiões metropolitanas para o centro do debate político. Acho que as próximas eleições podem proporcionar um momento privilegiado para isso.
Diplomatique: A senhora parece bastante confiante na capacidade de as próximas eleições suscitarem debates realmente substantivos.
Erundina: Dom Tomás Balduíno costuma dizer que “o novo é o povo quem cria”. Não são os políticos nem os partidos. É por isso que precisamos sempre plantar a semente da mudança, senão desanimamos. A próxima eleição pode ser um instrumento para isso. Aqui, em São Paulo, a candidatura de Marta Suplicy talvez tenha a capacidade de reaglutinar as forças de esquerda. Não por ela ou pelo PT, porque, sozinhos, eles não configuram um campo político à esquerda. Mas pelas propostas que talvez se associem ao seu nome. Sua campanha e seu governo poderiam proporcionar espaços para agregar muitas forças, inclusive as insatisfeitas com Lula. E os movimentos sociais que protagonizaram as grandes mudanças a que nos referimos antes e que hoje se encontram desmotivados certamente viriam juntos. Quem sabe saia desta eleição não apenas uma candidata eleita, mas uma articulação capaz de gestar um novo processo político. Devido à enorme importância econômica, social, política e cultural de São Paulo, isso repercutiria no país inteiro. Não estou embarcando na candidatura da Marta achando que é disso que a cidade precisa, mas em nome da oportunidade de gerar uma nova dinâmica capaz de atrair as pessoas interessadas em intervir, em participar. Um fórum onde se discuta a cidade, as grandes questões urbanas e uma gestão democrática capaz de abrir espaço para os movimentos sociais se expressarem. Dessa forma, se iniciaria um novo ciclo de acumulação de forças. Antigamente, essas forças estariam em um partido político, mas hoje não existe mais uma legenda que corresponda a tais expectativas. Justamente por isso devemos criar um espaço, com o pretexto da eleição, que dê condição de ação política a todas as pessoas que pensam a cidade e o país para além de um acanhado horizonte de quatro anos.
Diplomatique: A mensagem que fica é, então, de esperança?
Erundina: Com certeza. Às vezes, nós só enxergamos o processo apenas a partir da dimensão pessoal, individual. Ela é muito pobre. A história acontece além da nossa compreensão, não é?
Maíra Kubík Mano é jornalista e editora de Le Monde Diplomatique Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário