*Publicado em 30 de
Setembro de 2011 no Le Monde Diplomatique Brasil
Para a Comissão da Verdade ter eficácia no
cumprimento de seus reais propósitos, é indispensável que a revisão da Lei da
Anistia seja aprovada. Assim, espera-se que a comissão ofereça as condições
para o Estado promover a Justiça de Transição e concluir o processo de
redemocratização do país.
A Câmara dos Deputados aprovou no dia 21 de
setembro, em regime de urgência urgentíssima, o Projeto de Lei 7.376/2010 que
cria a Comissão Nacional da Verdade, no âmbito da Casa Civil da Presidência da
República, com a “finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de
direitos humanos praticadas no período de 1946 a 1988, a fim de efetivar o
direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
Esse projeto foi encaminhado à Câmara pelo então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em maio de 2010, antecipando-se à Corte
Interamericana de Direitos Humanos (OEA), no julgamento do caso da guerrilha do
Araguaia, que decidiu por unanimidade pela “incompatibilidade das anistias,
relativas a graves violações de direitos humanos, com o direito internacional”,
ou seja, a Lei da Anistia, aprovada em 1979, “afetou o dever do Estado de
investigar e punir ao impedir que os familiares das vítimas”, naquele caso,
“fossem ouvidos” por um juiz.
Diante dessa decisão, a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), em 21 de março de 2011, solicitou ao Supremo Tribunal Federal
(STF) que definisse se o Brasil deve ou não cumprir a decisão da Corte quanto à
Lei da Anistia.
Ao julgar a ação proposta pela OAB, que questionava
se a lei, aprovada em 1979, de fato anistiou agentes do Estado que cometeram
crimes como tortura, assassinatos e desaparecimentos durante o regime militar
(1964-1985), o STF decidiu, por sete votos a dois, manter a interpretação atual
da Lei 6.683 e impedir que os responsáveis por crimes contra opositores
políticos sejam processados, julgados e punidos.
O relator do processo, o então ministro Eros Grau,
deu parecer contrário à revisão da Lei da Anistia, sob o argumento de que ela
teria sido “amplamente negociada”. Convém lembrar, no entanto, as condições em
que tal acordo se deu. Os militares, embora politicamente enfraquecidos, ainda
estavam no controle do poder, e a sociedade civil dava os primeiros passos na
reconstrução da democracia no país.
Por entender a absoluta necessidade de revisão da
Lei da Anistia para que se conheça toda a verdade sobre os crimes da ditadura
militar e para que os responsáveis por eles sejam punidos, apresentei o Projeto
de Lei 573/2011, que dá interpretação autêntica ao que dispõe a Lei 6.683/1979,
no artigo 1º, parágrafo 1º.
O referido projeto está na Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional, da Câmara dos Deputados, e aguarda a votação
do parecer do relator, o deputado Hugo Napoleão (DEM-PI), contrário à aprovação
da matéria. Qualquer que seja o resultado da votação, o projeto será apreciado,
em seguida, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Casa.
Após muito mais de um ano que o Projeto de Lei
7.376/2010 (que cria a Comissão da Verdade) aguarda a instalação da Comissão
Especial que deveria apreciá-lo, o governo se mobilizou para apressar sua
votação, sem qualquer possibilidade de alterar a proposta apresentada, o que
contrariou a expectativa dos sobreviventes e dos familiares das vítimas da
ditadura, que têm sérias restrições ao texto original e querem ser ouvidos a
respeito.
Eles reclamam por não terem sido recebidos pela
presidente da República, Dilma Rousseff, para apresentar sua avaliação sobre a
proposta e se sentem desrespeitados pela ausência do ministro da Justiça, José
Eduardo Martins Cardoso; do ministro das Relações Exteriores, Antonio de Aguiar
Patriota; e da ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do
Rosário Nunes, nas duas audiências públicas realizadas pela Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, nos dias 29 e 30 de junho
de 2011, às quais compareceram dezenas de familiares vindos de lugares
distantes do país inteiro, com enorme sacrifício.
Embora considerem positiva a iniciativa do governo
de criar a Comissão da Verdade, apontam alguns pontos do projeto de lei que
exigem que sejam alterados: o longo período a ser investigado (1946-1985); a
composição limitada a sete membros; a escolha dos integrantes pela presidente
da República, sem ouvir a sociedade nem os familiares das vítimas; o tempo de
duração da comissão − apenas dois anos − para realizar um complexo e difícil
trabalho de investigação em todo o território nacional; a presença de militares
entre seus membros; a falta de autonomia financeira da comissão, que poderá
limitar suas iniciativas; e a ausência de expressa manifestação no texto do
projeto de lei de que os fatos apurados serão necessária e imediatamente
encaminhados ao Poder Judiciário para julgamento e punição dos culpados por
crimes de lesa-humanidade, nos termos da legislação vigente.
Essas são as principais críticas à proposta, feitas
não só pelos familiares, mas também por especialistas que acompanharam
experiências de comissões da verdade em outros países e esperam que as falhas
levantadas sejam corrigidas, a fim de garantir, efetivamente, o direito à
memória e à verdade histórica, bem como promover justiça, e não apenas
“reconciliação nacional”.
Revisão indispensável
Ademais, é indispensável a revisão da Lei da
Anistia, sem o que a Comissão da Verdade não poderá atingir seus objetivos,
pois não produzirá efeito jurídico prático, isso porque, de acordo com o
projeto, deve atender aos dispositivos legais, inclusive a Lei da Anistia,
editada ainda no período autoritário e cujo propósito foi permitir uma gradual
e controlada abertura do regime político.
O projeto que deu origem a essa lei, de iniciativa
do então presidente general João Batista Figueiredo, procurava, de um lado,
excluir do alcance da anistia os opositores ao regime que eventualmente
tivessem sido condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro ou
atentado a pessoas e, de outro, assegurar que a anistia se estenderia àqueles
que praticaram crimes conexos ao crime político, beneficiando, assim, os
agentes do Estado que praticaram crimes comuns e todo tipo de tortura contra
civis que se opuseram ao regime.
Entende-se, pois, que para a Comissão da Verdade
ter eficácia no cumprimento de seus reais propósitos é indispensável que o projeto
de lei que propõe a revisão da Lei da Anistia seja aprovado antes ou
simultaneamente à aprovação da lei que cria a referida comissão.
A expectativa das vítimas da ditadura militar e dos
que lutam pelo fortalecimento e pela consolidação da democracia no Brasil é que
a Comissão Nacional da Verdade apure, de fato, as graves violações dos direitos
humanos, seus autores e circunstâncias, com especial foco nos casos de
desaparecimentos forçados ocorridos durante o regime militar.
Enfim, espera-se que a comissão revele toda a
verdade sobre um longo e vergonhoso período de nossa história, ofereça as
necessárias condições para que o Estado brasileiro promova a Justiça de
Transição e, assim, conclua o processo de redemocratização do país, até hoje
inacabado
Luiza
Erundina
Deputada
Federal pelo PSB/SP
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