*Publicado no jornal terra - José Cruz/Agência Brasil - 2 de dezembro de 2011
Foto: Claudio Leal
Ex-prefeita de São Paulo (1989-1993), a deputada federal Luíza Erundina (PSB) defende uma consulta popular para discutir o projeto do prefeito Gilberto Kassab (PSD) - aprovado em primeira votação na Câmara Municipal - que libera a construção de novos prédios na região da avenida Faria Lima.
Se o projeto for aprovado em segunda votação, a prefeitura poderá negociar mais Cepacs (títulos públicos municipais) com o setor imobiliário - uma forma de angariar recursos, ainda que isso signifique a construção de prédios que contrariem o Plano Diretor e perfil definido para a região. A Faria Lima é uma área de engarrafamentos críticos em São Paulo, e o nó pode ser agravado ainda mais com o aumento do fluxo humano e de veículos.
Erundina critica a prevalência do "lobby" e da "especulação imobiliária" acima dos interesses públicos.
- É grave, porque gera consequências irreversíveis. Por exemplo, mudar a capacidade construtiva de uma região que combina várias funções - de negócios, de serviços... Uma cidade é um ente vivo - observa a deputada. - Se nós tívéssemos uma prática, como se tem em outros países, essa é uma situação típica de um referendo ou de um plebiscito... Mas a gente não consulta nem a Câmara Municipal direito, porque os lobbies que se exercem nesses espaços institucionais de poder não me parecem muito democráticos.
A ex-prefeita também lamenta a ideia de construir o shopping "Cidade Jardim Shops Jardins", na rua Haddock Lobo, sem uma discussão prévia com os moradores da região, uma das mais valorizadas de São Paulo.
- ...Se fossem construções para habitação, prédios para moradia ou mesmo para lojas, negócios, escritórios... Mas, shopping? É muito forte a densidade de trânsito, de tráfego. Impacta profundamente a dinâmica da região. Por que fazem nessa região? É pelo valor do metro quadrado. Quer dizer, é especulação imobiliária isso aí... Uma decisão dessa, pelo impacto que vai gerar, teria que haver uma consulta.
Confira a entrevista.
Terra Magazine - A Câmara de São Paulo aprovou um projeto do prefeito Gilberto Kassab que autoriza a construção de mais prédios na região da avenida Faria Lima. É um projeto que tem sofrido críticas. Como a senhora avalia a construção de novos prédios em áreas que já são, digamos, conflagradas e congestionadas?
Luíza Erundina- Uma cidade como São Paulo precisa ter um plano diretor e um plano de desenvolvimento urbano estratégico, de médio e longo prazos, para que as intervenções urbanas - no caso, essa da Faria Lima - não desequilibrem mais ainda a organização da mobilidade urbana e a concentração do tráfego. Isso agrava a qualidade de vida da cidade. Nós introduzimos esse mecanismo na gestão da cidade, para as regiões centrais com infraestrutura de saneamento e espaço ocioso, capacidade construtiva ociosa. Além de dar pleno aproveitamento a toda infraestrutura ociosa, era em termos de quantos habitantes ocupavam esses espaços e usufruíam dessa infraestrutura. Isso, de um lado. De outro, gerava receitas e recursos públicos destinados à habilitação popular. Era articulado, vinculado, acordado em termos de um valor correspondente à valorização do metro quadrado nessas áreas - quanto mais valorizadas, mais a operação representava recursos públicos para investir em habitação popular, onde há déficit habitacional.
Não era para você capitalizar as finanças do município, capitalizar os cofres municipais, como me parece que ocorreu com as outras operações urbanas. Os recursos gerados não foram aplicados, segundo informações da própria imprensa. Mais de R$ 600 milhões teriam sido obtidos com as outras operações urbanas na cidade. E isso não teria tido aplicação numa finalidade social, do ponto de vista urbanístico, do equilíbrio da cidade, do gerenciamento da mobilidade e outras funções urbanas. As intervenções pontuais, em geral, tornam mais grave o quadro de desequilíbrio, geram problemas e agravam a qualidade de vida numa determinada região da cidade. A piora do trânsito numa região vai ter um impacto na cidade como um todo. É uma cidade que tem uma conurbação intensa, uma concentração urbana enorme, uma densidade urbana excepcional. Nesse sentido, acho que não é bom para cidade e vai na contramão da tendência das grandes cidades do mundo, que é exatamente tirar a densidade...
E reaproveitar o Centro?
Exatamente. Então, acho que não é uma política boa para a cidade, que já enfrenta grandes problemas.
Tem outra questão que a senhora sempre levantou, a respeito do planejamento da Região Metropolitana, e não apenas da cidade em suas fronteiras. Esse tipo de discussão não faz falta neste momento, perto da eleição?
Isso só é possível com um planejamento estratégico, com uma concepção de desenvolvimento urbano que abranja algumas décadas, evidentemente com planos de curto e médio prazos também, para que as coisas aconteçam de forma lógica e ordenada, para que não se agrave mais os problemas. As funções urbanas, hoje, não começam e se fecham nos limites de uma cidade na sua concepção formal. As fronteiras de uma cidade como São Paulo, em relação às cidades da grande São Paulo e da região metropolitana, não recomendam intervenções pontuais sem levar em conta os impactos que isso gera em outros espaços urbanos. Ou mesmo na própria região da cidade. Pelo crescimento acelerado e por falta de um planejamento urbano - cada governo que entra adota uma política -, isso vai se agravando. O trânsito de São Paulo está, praticamente, inviabilizando a vida da cidade.
Certas intervenções urbanas, certas licenças que são concedidas, não lhe angustiam? Agora mesmo vai ser construído um "Cidade Jardim Shops Jardins", na rua Haddock Lobo. É mais uma intervenção que vai tirar as pessoas das ruas e levá-las a um convívio fechado, de alta segurança, ao estilo do Cidade Jardim. Esse tipo de empreendimento preocupa a senhora, do ponto de vista urbanístico?
Com certeza. Porque isso impacta muito em relação à mobilidade. Um shopping, com uma movimentação muito grande, concentra. Diferentemente se fossem construções para habitação, prédios para moradia ou mesmo para lojas, negócios, escritórios... Mas, shopping? É muito forte a densidade de trânsito, de tráfego. Impacta profundamente a dinâmica da região. Por que fazem nessa região? É pelo valor do metro quadrado. Quer dizer, é especulação imobiliária isso aí. Por que conseguem que a Câmara aprove? Uma decisão dessa, pelo impacto que vai gerar, teria que haver uma consulta. Não é a Câmara Municipal sozinha que deve decidir uma operação dessa.
A senhora defende uma consulta popular?
Claro! Uma consulta pública. Um debate com a região, com a sociedade no espaço que vai sofrer esse impacto. Se fosse uma gestão democrática, uma decisão dessa não passaria apenas pela Câmara Municipal. Ou, quando viesse a ser definida pela Câmara, já teria passado pelo crivo de setores organizados da sociedade. Aí, sim, você submeteria a fase final para institucionalizar uma medida através de uma lei. E não começar pela lei, sem nenhuma discussão! Senão, a lei é gerada e sua aplicação vai gerar problemas. Uma gestão democrática tem todas as vantagens. Eles alegam que isso é mais demorado, tem que administrar conflitos, administrar interesses, mas, paciência!, democracia é isso.
Mas, em São Paulo, a especulação imobiliária é visivelmente influente no poder político.
Ah, sempre foi. Em outros momentos, a cidadania estava mais presente. A sociedade civil organizada era mais atuante, militante, interferia mais, reivindicava mais, questionava mais...
Por que mudou?
Exatamente porque são governos que não estimulam a organização da sociedade, não auscultam os representantes da sociedade, centralizam de forma autoritária o poder. Essa é um pouco a regra, não é só essa cidade, esse governo aí. Lamentavelmente, é um pouco a regra dos governos dessa cidade e do País também. É pouca democracia que se tem, no sentido de consultar a sociedade, de debater com audiências públicas, como a própria Constituição Federal e as Leis Orgânicas preveem, sobretudo quando é uma medida que vai impactar a vida de pessoas, a economia local. Não é só juntar dinheiro para fazer não-sei-o-quê. Nem se sabe precisamente onde vai ser investido esse recurso, se o custo-benefício é favorável ou não ao interesse social, ao interesse da cidade. Há muitas variáveis que devem ser consideradas quando se trata de tomar uma medida dessa natureza. É muito simplista dizer: "nós vamos liberar o potencial construtivo, permitir além dos limites da lei orgânica do município ou do código de obras da cidade"... Interfere em várias normas legais da cidade. Você tem que levar em conta tudo isso. Não se pode levar dessa forma. Hoje nós temos métodos de planejamento estratégico, temos técnicos que são capazes de fazer previsões. A discussão possibilitaria o custo-benefício. Que benefício apresenta? É simplesmente juntar algum dinheiro? Pra investir onde? Pra atingir quantas pessoas? Qual é o interesse público em relação a esse investimento? Angariar esses recursos para ficar congelado ou para especular no sistema financeiro não é bom para a cidade.
Esses improvisos têm efeitos graves imediatos?
É grave, porque gera consequências irreversíveis. Por exemplo, mudar a capacidade construtiva de uma região que combina várias funções - de negócios, de serviços... Uma cidade é um ente vivo. Ela se compõe de várias funções. Se certas funções têm uma harmonia entre elas, produzem uma cidade humanamente melhor, viável socialmente... Esses critérios, lamentavelmente, não estão presentes quando se toma uma decisão dessa forma, sem uma compreensão da cidade ou da parte da cidade que vai sofrer com essa medida. Se nós tívéssemos uma prática, como se tem em outros países, essa é uma situação típica de um referendo ou de um plebiscito. Em vários países da Europa, a cada eleição que ocorre, os eleitores são consultados não apenas sobre a eleição das pessoas, mas sobre as questões que estão na ordem do dia naquele País. Por que a gente não começa a ir testando, para criar uma cultura? Isso vai sendo incorporado pela cidadania. Mas a gente não consulta nem a Câmara Municipal direito, porque os lobbies que se exercem nesses espaços institucionais de poder não me parecem muito democráticos. Os lobbies e os interesses nem sempre confessados. A gente lamenta. Estamos às vésperas de uma eleição municipal. Não seria o momento de pensar nessas questões? Quem vai ser eleito é que vai administrar as consequência dessa política.