*Entrevista à Revista Por Sinal - Outubro de 2013 / Foto: Agência Câmara
Com uma qualificada trajetória política, seja como administradora à frente da maior cidade da América Latina, seja como parlamentar combativa, já no seu quarto mandato, a deputada Luiza Erundina imprimiu a essa trajetória sua marca registrada: a de esta sempre em sintonia fina com os movimentos sociais, acolhendo seus principais pleitos. “O único sentido de eu estar nesse mandato é que ele é uma extensão dos movimentos. É o que dá densidade, é o que justifica que eu marque presença”, explica. No Congresso Nacional, por exemplo, ajudou a criar duas importantes frentes parlamentares, a da reforma política com participação popular, e a da democratização dos meios de comunicação. É de sua autoria, também, a PEC 90, que estabeleceu o transporte público como um direito social, uma antiga reivindicação do Movimento Passe Livre, com quem mantém uma ótima relação desde os tempos de prefeita da cidade de São Paulo. Com mais de 70 anos, olhos azuis muito vivos, Erundina acredita na boa política, nas boas utopias e, agora, mais do que nunca, na força desses jovens que ocuparam as ruas. “A juventude começa a descobrir a dimensão política. Eles serão, certamente, os principais atores de um novo momento da política brasileira”.
Há um consenso de que o Brasil não é mais o mesmo antes e depois de junho. Qual foi o principal recado das ruas?
Foi um recado claro sobre o que estava errado no plano institucional do país. Uma manifestação massiva, com muita juventude, e uma negação contundente à legitimidade das instituições políticas. Já se sabia que a classe política estaria causando indignação, mas não com tanta força e clareza como se deu. Acho que manifestações desse porte só na época da resistência à ditadura, na luta pela redemocratização, pela
anistia, pelas Diretas. Foi um momento de grande mobilização da sociedade, durante um mês inteiro, em todo o país, e com desdobramentos até os dias de hoje.
Recados do tipo “vocês não nos representam” são manifestações evidentes da falta de legitimidade da representação política. Ou ainda, “queremos participar”; “desculpe o transtorno, estamos mudando o país”; são manifestações que denunciam a falência da organização institucional do país. Tais declarações geraram enorme insegurança e perplexidade em grande parte dos políticos. Eles não suspeitavam desse nível de cobrança.
Do ponto de vista da participação, das propostas, o que surpreendeu tanto? Foi essa força, essa capacidade de mobilização?
A meu ver, o que mais surpreendeu foi a percepção do papel e da força formidável das redes sociais. Elas são fator determinante da dinâmica social no movimento de massa. Importante também é o fato de que a juventude começa a descobrir a dimensão política, através das informações que passou a ter e da interação que esses meios possibilitam. Tudo isso contribuiu para tais manifestações. Imaginava-se que os jovens não iriam além das manifestações e abaixo-assinados pela internet. Mas saíram desse estágio e foram para as ruas. Contudo, foram manifestações efêmeras, sem organização, sem liderança, sem uma agenda clara. A verdade é que as formas de organização estão superadas, sejam sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos. Esse é o atual patamar da democracia no Brasil e nos demais países do mundo. Considero ser o fim de um ciclo histórico-social, que no Brasil teve início com a luta de resistência à ditadura civil-militar e se desdobrou no processo de redemocratização do país, que ainda não se completou, porque toda a verdade sobre os crimes da ditadura não foi revelada e os responsáveis por eles continuam impunes.
Os partidos democrático-populares que então surgiram e que eram expressão de um outro momento da vida democrática do país se esvaziaram por terem se domesticado e aderido ao modelo tradicional da política, com suas práticas viciadas e voltados exclusivamente à disputa e conquista de poder.
Esse ciclo, no meu entendimento, se esgotou, e um novo ciclo decorrente da espiral dialética da História começa a surgir e exige novos paradigmas e uma nova cultura política. É nesse contexto que eclodem, com muita força e significado simbólico, essas manifestações de rua, protagonizadas por jovens que, certamente, serão os principais atores nesse novo e promissor momento da política brasileira. Sou otimista diante de tudo isso. As manifestações de junho trouxeram um novo alento.
Como a senhora recebeu a proposta da presidente Dilma de uma Assembleia Constituinte específica para discutir a reforma política?
Ela poderia ter feito isso muito antes. Na primeira visita oficial ao Congresso Nacional depois de empossada, defendeu que a reforma política seria prioritária. E, nesse tempo todo, nada fez no sentido de viabilizá-la, embora tenha uma enorme base de sustentação no Congresso. E se a reforma política tivesse, de fato, incorporada aos seus propósitos, já teria sido feita nesses quase dois anos de gestão.
Só agora, em resposta às manifestações de rua, propõe a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para elaborar e aprovar uma reforma política. Só que isso não seria constitucionalmente viável, além do risco de não se restringir ao tema específico da reforma política, sem que a sociedade civil estivesse devidamente mobilizada para acompanhar e evitar retrocessos. Até mesmo a eleição dos constituintes sob as regras eleitorais vigentes e o financiamento privado de campanhas representariam um risco político real.
Desculpe insistir, mas, ao propor a convocação de uma Constituinte exclusiva, Dilma não estava dizendo que com este Congresso que aí está, com esse perfil, não vai haver nenhuma reforma política pra valer?
Acredito que sim, mas, em princípio, todo governo tem poder sobre sua base de sustentação. Senão, para que valeria essa coalizão de governo? O que existe hoje na Câmara e no Senado são grupos de trabalho com a “encomenda” de propor uma reforma política. Nem mesmo são comissões especiais com representação proporcional das bancadas e com poder de elaborar e aprovar uma proposta para, em seguida, ir ao Plenário da Câmara para ser votada. Minha participação em um desses
grupos de trabalho só se deu a partir da reivindicação para que houvesse uma representante da bancada feminina.
Estou há mais de 13 anos na Câmara e, todo esse tempo, a reforma política é discutida em várias comissões especiais. Ano passado, tivemos a que foi relatada pelo deputado Henrique Fontana, do PT do Rio Grande do Sul. Ele trabalhou muito bem. Discutiu com todas as bancadas partidárias, mas, no curso dos trabalhos, tentou contemplar a todos e terminou desfigurando a proposta inicial.
O que, até agora, vem sendo apresentado não é uma proposta do sistema político que, como tal, se compõe de partes, que devem estar compatibilizadas entre si. Portanto, lamentavelmente, não é a reforma política que a sociedade precisa, mas, sim, um remendo. Ao mesmo tempo, o grupo de trabalho coordenado pelo deputado Cândido Vacarezza apresentou na Câmara um projeto de lei de minirreforma eleitoral que tramita em regime de urgência e que, se aprovado, comprometerá conquistas importantes da sociedade civil, ao flexibilizar a aplicação da lei da ficha limpa e o controle do abuso do poder econômico nas eleições.
A senhora, há anos, está batalhando pela reforma política. É coordenadora da Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular.
A Frente foi criada em 2002 e funciona até hoje, com a participação de deputados, senadores e de mais de 50 entidades nacionais, tais como OAB, CNBB, CUT, entidades de mulheres e outras. É um fórum representativo da sociedade civil que tem marcado presença ativa em todas essas tentativas de reforma. Elaborou, inclusive, um projeto de lei de Reforma Política, que aguarda apreciação pela Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados.
Essa conjuntura, de muita frustração, em que a insatisfação da sociedade é enorme, não é favorável para que essa Frente cresça, ganhe força?
Com certeza. Hoje, a Frente integra uma coalizão de organizações da sociedade civil, e iniciativa da CNBB, que convidou entidades para discutir a elaboração de uma proposta de reforma política que unificasse as defendidas pela Plataforma dos Movimentos Sociais e pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Esse processo resultou na proposta da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, apresentada em ato público no último dia 3 de setembro, com a presença do presidente da CNBB (cardeal Raymundo Damasceno), do presidente da OAB (Marcus Vinicius Furtado Coelho), parlamentares e movimentos sociais. Referida proposta foi entregue ao presidente da Câmara dos Deputados (deputado Henrique Eduardo Alves). Em seguida, foi lançada uma campanha para debater a proposta com a
sociedade. Além disso, as entidades que integram a Coalizão manifestaram posição contrária às propostas em discussão na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
Quais os eixos principais dessa proposta unitária?
A Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas propõe os seguintes pontos básicos:
1 - Implantação do financiamento público para as campanhas eleitorais;
2 - Proibição de financiamento eleitoral por pessoas jurídicas;
3 - Permissão de contribuição individual, obedecendo ao teto de setecentos reais por eleitor e não ultrapassando o limite de 40% dos recursos públicos recebidos pelo partido destinados às eleições;
4 - Extinção do sistema de voto dado ao candidato individualmente, como hoje é adotado para as eleições legislativas;
5 - Adoção do sistema eleitoral do voto dado em listas pré-ordenadas, com alternância de gênero, formadas pelos partidos e submetidas a dois turnos de votação (o eleitor primeiro vota no partido e depois escolhe um dos nomes da lista);
6 - Regulamentação dos instrumentos de democracia direta ou democracia participativa, previstos no art. 14 da Constituição.
A senhora é otimista em relação a esse diálogo com a sociedade?
Sou otimista, sim, desde que consiga o apoio da sociedade e esta pressione o Congresso Nacional no sentido da aprovação do projeto de lei apresentado pela Coalizão. Caso seja rejeitado, a ideia é coletar o número de assinaturas necessárias junto aos eleitores para que seja apresentado como projeto de lei de iniciativa popular.
As ruas falaram disso.
Sim, revelando a profunda crise da representação e das instituições políticas, o que reclama uma reforma estrutural do sistema político brasileiro.
Não terá sido junho esse momento, o da sociedade se manifestar cobrando isso? E Será que o Estado entendeu o recado?
O Estado não quer entender e nem acredita na força do povo; muito menos dá atenção aos anseios da sociedade. Cada parlamentar só está preocupado com os próprios interesses. Os partidos políticos, por sua vez, estão desatentos aos reclamos do povo e a lógica eleitoral se sobrepõe a tudo.
Toda a sua trajetória política, seja na administração pública, seja no Legislativo, sempre foi de tecer um elo forte com os movimentos sociais e trabalhar com eles.
A ideia é trazer esses movimentos para pressionar o Congresso. Era como o PT fazia no início da sua trajetória política. Em nosso primeiro mandato na Câmara Municipal de São Paulo éramos apenas cinco vereadoras e vereadores e provocamos uma verdadeira revolução naquela Casa, resultado da nossa relação com os movimentos sociais. Levamos o movimento para dentro da Câmara e quebramos a hegemonia da elite, do atraso, do compadrio.
E, outra coisa, para nós de esquerda, socialistas, só se justifica disputar, conquistar e exercer mandatos nos Poderes Legislativo e Executivo, nos marcos do Estado capitalista, se fizermos o oposto do que fazem os de direita. Não basta que sermos éticos, honestos e investirmos prioritariamente em políticas sociais, pois governos conservadores, se forem inteligentes, também o fazem. Para além disso, o que deve nos distinguir é o modo democrático de governar, ou seja, com transparência, com controle social e efetiva participação da sociedade civil organizada nas decisões estratégicas do governo.
Mas os governos conservadores não fizeram transferência de renda.
Os governos ditos democrático-populares praticamente só têm feito transferência de renda. Apenas a política de salário mínimo, que possibilita ganhos reais, é que promove alguma distribuição. Seria necessário, ainda, uma reforma tributária como mecanismo de efetiva distribuição de renda.
E o Bolsa Família não distribuiu?
O Bolsa Família é um importante programa de transferência de renda. O governo transfere recursos públicos destinados às políticas sociais em geral para investir na política de assistência social que, por si só, não emancipa os beneficiários dela. E isto está provado. Pesquisas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) demonstram que pessoas beneficiadas desde o início pelo programa não conseguem se emancipar.
Apresentam as mesmas dificuldades que tinham antes, e se mantêm dependentes desse benefício. É um programa necessário, seja porque atende às necessidades de sobrevivência de milhões de pessoas, seja porque injeta recursos nas regiões mais pobres, o que dinamiza as economias locais. Mas, do ponto de vista da pessoa, da família, do grupo social, não emancipa, pois não está associado ao emprego, nem à geração de renda própria. Não há uma política de incentivo à microeconomia, como geradora de trabalho e renda, em escala capaz de promover o desenvolvimento local.
Temos como referência os bancos populares espalhados pelo país inteiro, com ótimos resultados, porém, carecem de uma política de governo voltada à microeconomia com
sustentabilidade.
Apresentei um projeto de lei à Câmara dos Deputados, em agosto de 2007, para regulamentar o segmento da microeconomia, cuja aprovação encontra forte resistência da área econômica do governo, como se essa medida pudesse atentar contra a macroeconomia. É, com certeza, estreiteza de visão, insensibilidade e falta de abertura para soluções inovadoras, criadas pelos próprios setores populares como resposta para os problemas de sobrevivência e o desenvolvimento das comunidades locais. Para tanto, o segmento da microeconomia teria que se institucionalizar a partir de uma legislação específica que desse conta das peculiaridades desse setor, e que fosse compatível com o sistema econômico convencional da macroeconomia. Para isso, falta compreensão e vontade política dos donos do poder.
Com efeito, a rede de bancos do povo, existente no país, não dispõe de um marco legal que lhe dê acesso a créditos bancários subsidiados para sustentar suas atividades. O que tem hoje são pequenas ajudas de governos para manter uma oficinazinha aqui, outra acolá. Tem que ter uma política de apoio à microeconomia e que tenha escala.
Esses setores de microcrédito, de economia solidária, têm seus embriões dentro do governo, mas não se desenvolvem. Por quê?
São atividades marginais. Não se integram à política econômica como um todo. A Secretaria Nacional de Economia Solidária, comandada pelo professor Paul Singer, é ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego, mas não está entre suas prioridades. Nota-se que não é um governo que promova mudanças. Entendo os condicionantes, as determinações, a correlação de forças. Mas é preciso romper com essa paralisia, com vistas a promover mudanças de interesse da maioria.
Voltando ao seu trabalho no Congresso...
O que dá sentido e alguma eficácia ao meu trabalho no Congresso é o fato de ser o mandato um instrumento dos movimentos sociais. Propus a criação e presido duas frentes parlamentares: a Frente Parlamentar pela Reforma Política e a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação, ambas com participação popular. São espaços democráticos de debate e de elaboração de propostas sobre matérias relativas aos objetos de atuação dessas Frentes.
Lembro que em 1999, início do meu primeiro mandato, fui representar minha bancada como titular na Comissão Permanente de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados. Lá me dei conta do caráter estratégico das Comunicações para as mudanças que precisam ocorrer no país. Talvez seja mais importante do que a reforma agrária, causa pela qual luto a vida toda, pois acredito que no dia em que democratizarmos os meios de comunicação acumularemos força política para promover todas as reformas, inclusive a reforma agrária.
É, pois, fundamental a democratização da mídia. Não é por acaso que os concessionários das comunicações têm tanta resistência a qualquer mudança no marco legal do sistema de comunicação, com vistas a sua democratização. Eles têm consciência do formidável poder que é ter o controle desses meios.
Fale um pouco desse Projeto de Lei que regulamenta a democratização das mídias.
Tivemos a 1ª Conferência Nacional de Comunicação, no final de 2009, que aprovou importantes propostas para a política de comunicação. A Conferência foi precedida por conferências estaduais e contou com a participação de cerca de 1600 delegados, representando os três segmentos do setor: os empresários, a sociedade civil e o governo. Foram aprovadas mais de seiscentas resoluções.
A expectativa era de que o resultado dessa Conferência fosse base para a construção de um projeto de reforma do sistema de comunicação, com a elaboração de um novo marco legal das telecomunicações, visto que o Código Brasileiro das Telecomunicações é de 1962, a Lei Geral de Telecomunicações é de 1997 e o capítulo da Comunicação Social da Constituição até hoje não foi regulamentado. Portanto, é um marco regulatório obsoleto, com mais de 50 anos, que sobrevive em plena era digital.
Franklin Martins apresentou um projeto, quando foi ministro das Comunicações, e essa proposta que veio do governo foi demonizada pela mídia.
Pois é. Para eles, qualquer alteração das regras atuais é considerada ameaça à liberdade de expressão. É absurda a concentração de poder da mídia. São apenas quatro ou cinco grupos que detêm todas as outorgas e concessões (por 15 anos para televisão e dez anos para rádio), com renovações automáticas por iguais períodos. Já foram feitas duas renovações, perfazendo um total de 45 e 30 anos, respectivamente.
Tentei, na Comissão de Ciência e Tecnologia, aprovar requerimentos para realização de audiências públicas, antes das renovações, e não consegui. Isto porque além de grande
número de membros da Comissão ser de concessionários de meios de comunicação e de outros, que representam os interesses dos empresários do setor, não contei nem mesmo com os deputados do campo progressista, pois temem ser excluídos dos espaços da mídia. Como se vê é uma luta muito desigual.
A ideia seria transformar esse novo marco regulatório em uma iniciativa popular?
Exatamente. Algumas das propostas aprovadas pela Conferência Nacional de Comunicação foram incorporadas a um projeto de marco regulatório que o então ministro Franklin Martins deixou elaborado, mas que não foi considerado pelo ministro de Comunicações do governo da presidente Dilma Rouseff, Paulo Bernardo. E a situação continua a mesma de 50 anos atrás.
Quando o ministro era Hélio Costa, tratava-se, pelo menos, de um adversário declarado das mudanças reivindicadas pela sociedade e nós o combatíamos. Agora, a situação é muito mais difícil, pois o atual ministro das Comunicações é um companheiro que, em termos de alinhamento com os empresários e de atenção aos interesses deles, é pior do que o anterior.
No último mês de agosto, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) lançou uma campanha de coleta de assinaturas em um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para uma Mídia Democrática, propondo um novo marco regulatório para as comunicações sociais no Brasil.
Portanto, a esperança está na aprovação desse projeto de lei, para que o sistema de Comunicação Social do país saia do estágio de meados do século passado e entre na era digital, sem o que o desenvolvimento e a democracia brasileira estarão definitivamente comprometidos.
A senhora concorda que leis avançadas, como a da reforma política ou da democratização dos meios de comunicação, em virtude dessa promiscuidade do Congresso, ficam inviáveis de tramitarem nas duas Casas, de forma natural, sem que haja uma forte mobilização popular?
Não tenho a menor dúvida! Mas, primeiro, é necessária a adesão de pelo menos 1,3 milhão de pessoas, exigida por lei para apresentação de projeto de lei de iniciativa popular, e muito mais que isso, a forte pressão da sociedade sobre o Congresso Nacional, para exigir sua aprovação.
Este seria o caminho para enfrentar a crise institucional?
Sem dúvida, o caminho para se enfrentar a crise institucional passa, necessariamente, por forte mobilização e pressão popular sobre o Congresso. Mas a dificuldade para isso é o atual esvaziamento dos partidos políticos, sobretudo os do campo democrático-popular, e das organizações sociais, tais como sindicatos, associações profissionais, movimentos populares, comunidades de base das igrejas, que também se ressentem da falta de legitimidade e de reconhecimento dos segmentos sociais que pretensamente representam.
Isso contribui para o aprofundamento da crise, que se estende a todas as instituições sociais e políticas e explica, num certo sentido, a falta de orientação e de rumo das manifestações de massa que, em maior ou menor intensidade, ocupam todos os dias as ruas de nossas cidades.
Assim, uma forte e organizada pressão popular sobre o Congresso, para que vote e aprove as reformas reivindicadas pela sociedade, enfrenta grandes desafios, cuja superação exige das organizações acima mencionadas, que recriem suas pautas e revolucionem suas práticas para que recuperem a confiança e a adesão de suas bases.
É de sua autoria a PEC 90, que estabeleceu que o transporte público é um direito social. Em que esse reconhecimento ajuda a melhorar a qualidade do transporte público? Este não era um pleito do Movimento Passe Livre?
O reconhecimento constitucional de um direito social obriga o Estado a criar política pública para garantir esse direito. Ao ser incluído o transporte no artigo 6º da Constituição Federal abre-se a possibilidade dos cidadãos interessados requererem a intervenção do Ministério Público para que criem as condições necessárias ao acesso a esse direito que, no caso do transporte, é um meio de acesso a outros direitos, como o de mobilidade urbana, por exemplo.
O subsídio público à tarifa do transporte coletivo já é uma prática corrente nos municípios brasileiros, podendo levar à adoção da “tarifa zero” ou “passe livre” que, inclusive, já existe em algumas cidades brasileiras.
Para concretizar-se essa política é preciso que se criem novas fontes de financiamento do serviço público de transporte, como, por exemplo, uma reforma tributária municipal que estabeleça alíquotas diferenciadas do IPTU, ou seja, a progressividade desse tributo, com vistas a socializar os custos desse serviço público essencial, indispensável, portanto, ao funcionamento da cidade e, como tal, de interesse de todos.
É, sim, um pleito e bandeira do “Movimento Passe Livre” que se inspirou na proposta de “tarifa zero” do nosso governo em São Paulo, e que agora retorna com força e legitimidade pelas mãos da juventude.
Em uma nota técnica, o Ipea aponta algumas falhas do projeto. Fala que a tarifa zero representaria para o governo um dispêndio da ordem de R$ 15 bilhões. Como a senhora avalia isso?
A proposta não é a de que os custos sejam cobertos total e exclusivamente por subsídio público. Até porque, neste caso, o ônus continuaria recaindo sobre os usuários diretos do serviço, visto que os recursos destinados a esse fim sairia do caixa
comum, alimentado pelos tributos que todos pagam e que são aplicados na manutenção de todos os serviços públicos prestados pela administração municipal.
O que se pretende é que se faça uma reforma tributária, adotando-se a progressividade do IPTU, que é um imposto sobre a propriedade de imóveis e, como tal, um imposto direto, e, portanto, justo.
Com o aumento dos recursos gerados com a aplicação de uma alíquota diferenciada do IPTU, se constituiria um Fundo Municipal de Transporte para financiar os custos totais da prestação do serviço pelas empresas de transporte.
Com essa política se faria justiça fiscal ao se distribuir desigualmente a carga tributária, ao mesmo tempo se promoveria justiça social, ao se socializar os custos de um serviço
público essencial – o transporte coletivo – à vida da cidade.
A proposta, ainda embrionária, do prefeito Haddad de se criar um órgão municipal para controlar todo o transporte coletivo pode ajudar a melhorar a situação caótica do transporte público em São Paulo?
Pode, mas essa iniciativa tem mais a ver com a preocupação em controlar os custos do serviço. Só que as planilhas em si não têm muito segredo: 45% são para recursos humanos, 20% para combustível e o resto para manutenção, garagem e tributos. A margem de lucro é perfeitamente controlável. O que contribui para elevar os lucros é a remuneração do serviço por passageiros transportados, com redução de frotas e superlotação dos ônibus, o que aumenta o desconforto dos passageiros, ao mesmo tempo em que eleva os lucros das empresas concessionárias.
O que é preciso é mudar a lógica do sistema. Essa questão é essencialmente política e não apenas financeira, orçamentária e contábil. Temos que perguntar que cidade queremos. Como atender o direito à cidade de todos os cidadãos e cidadãs que a constroem e que nela vivem. Assim, é justo que todos deem sua parcela de colaboração, no sentido de melhorar a qualidade de vida e garantir o direito de todos à cidade.