quinta-feira, 9 de maio de 2013

EM DEFESA DO PROJETO DE LEI Nº 573, DE 2011


 Pronunciamento do Jurista Fábio Konder Comparato na Audiência Pública na Comissão de Constituição e Justiça realizada no Congresso Nacional no dia 09/05/2013*

    1.– O Projeto de Lei nº 573, de 2011, apresentado pela eminente Deputada Luiza Erundina, objetiva “dar interpretação au-têntica ao disposto no art. 1º, § 1º da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979”. Segundo esse dispositivo, são declarados conexos com os crimes políticos, objeto da anistia concedida pela lei, “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou prati-cados por motivação política”.

De acordo com os termos do art. 1º do citado Projeto de Lei, “não se incluem entre os crimes conexos, definidos no art. 1º, § 1º da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos”.
   
    2.– A razão dessa propositura legislativa é dar efetivo cum-primento à Sentença condenatória do Estado Brasileiro, proferida por unanimidade em 24 de novembro de 2010 pela Corte Intera-mericana de Direitos Humanos, no  caso Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), como segue:

“As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.”

    3.– Por que razão deve o Brasil cumprir integralmente tal decisão?

    Comecemos por lembrar que o princípio fundamental do Es-tado de Direito impõe a todas as potências soberanas o respeito absoluto à jurisdição dos tribunais internacionais, quando essa ju-risdição foi por elas oficialmente reconhecida. No contexto do di-reito internacional, prevalece em qualquer hipótese o princípio pacta sunt servanda, sendo inadmissível que um Estado invoque a sua soberania para rejeitar a aplicação de tratados ou convenções que haja aceito.

    O Brasil aderiu à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconheceu como obrigatória, nos termos do disposto em seu art. 62, a jurisdição da citada Corte. O art. 68 da Convenção dispõe que os Estados signatários “comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.

    4.– Contrariamente a essa conclusão inescapável, o Exmo. Sr. Relator do Projeto de Lei nº 573, de 2011, na Comissão de Re-lações Exteriores e de Defesa Nacional desta Câmara, afirmou que o Estado Brasileiro não tem o dever de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em razão da supremacia da Constituição a qualquer acordo internacional que a integre, idealmente, quando algum de seus dispositivos afronte os princípios mesmo (sic) que informam a Constituição”.

    Tal assertiva, lamento dizê-lo, constitui um despautério jurídico.

    Antes de mais nada, Sua Excelência referiu-se a acordos in-ternacionais que integrem “idealmente” a Constituição da Repú-blica. Não se sabe ao certo o que significa esse advérbio, qualifi-cador da integração de um tratado ao sistema constitucional brasi-leiro. Os tratados internacionais integram ou não integram a ordem constitucional brasileira; não há meio termo.

    Para recusar a execução da sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Sua Excelência invocou princípios constitucionais.

    Pois bem, se lançarmos os olhos para o Título I da Constituição Federal de 1988, consagrado justamente aos Princípios Fun-damentais, encontraremos desde logo as seguintes disposições.
No art. 1º, inciso III, a Carta Magna declara, textualmente, que o Estado Brasileiro tem como um dos seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana”. Pergunta-se: – É logicamente concebível que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos afronte esse princípio constitucional?

Por outro lado, no art. 4º, II, a Constituição Federal dispõe que “a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais” pelo princípio da “prevalência dos direitos huma-nos”. É o caso de indagar: – Ao aderir à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e aceitar a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado Brasileiro infringiu, porventura, o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais?

Finalmente, ao afirmar que há supremacia de nossa Constituição sobre “qualquer acordo internacional que a integre, ideal-mente”, o Sr. Relator do presente Projeto de Lei, na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, esqueceu-se, ao que parece, do disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, se-gundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Fe-derativa do Brasil seja parte”. Será preciso reafirmar que o Brasil, por decisão deste Colendo Congresso Nacional, aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos, integrando-a, por-tanto, ao sistema constitucional pátrio?

    5.– E quais as razões pelas quais a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou inválida a lei de anistia de 1979, tal co-mo interpretada pelo Supremo Tribunal Federal?
    Duas foram essas razões.

    A primeira delas é que a Lei nº 6.683, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, beneficiou agentes públicos res-ponsáveis pelo cometimento sistemático de graves violações de direitos humanos, tais como a execução sumária de oponentes po-líticos, com ou sem a mutilação dos cadáveres, o estupro e a tortura de presos, frequentemente seguida de morte.

Segundo a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, comprovaram-se oficialmente até hoje 361 casos de assassínios e desaparecimentos, com ocultação ou destruição do cadáver, durante o regime militar. Por sua vez, a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, na publicação Direito à Memória e à Verdade, afirmou que tive-mos 475 mortos e desaparecidos durante regime militar. Calcula-se que 50.000 pessoas foram presas, sendo a maior parte delas tor-turadas, algumas até a morte. O governo militar chegou mesmo a aparelhar, em Petrópolis, uma casa onde pelo menos 19 pessoas foram executadas, sendo seus corpos incinerados a fim de não deixar vestígios.

Em momento algum de nossa vida de país independente, os governantes, quer no Império quer na República, chegaram a co-meter tão repugnantes atrocidades.

Ora, tais fatos, quando praticados sistematicamente por a-gentes estatais contra oponentes políticos, são qualificados no di-reito das gentes, desde o término da Segunda Guerra Mundial, como crimes contra a humanidade; o que significa que o legis-lador nacional é incompetente para determinar, em relação a eles, quer a anistia, quer a prescrição.

Em duas Resoluções formuladas em 1946, a Assembléia Ge-ral das Nações Unidas considerou que a conceituação tipológica dos crimes contra a humanidade representa um princípio de direito internacional.

Essa mesma qualificação foi dada pela Corte Internacional de Justiça às disposições da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, cujos artigos III e V estatuem que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e que “nin-guém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, por sua vez, definiu, em seu art. 7º, dez tipos de crimes contra a humani-dade, e acrescentou ao elenco uma modalidade genérica: "outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencional-mente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade fí-sica ou a saúde física ou mental".

Desse conjunto normativo decorre a definição de crime con-tra a humanidade como o ato delituoso em que à vítima é negada a condição de ser humano.

    Ora, os princípios, como assinalado pela doutrina contempo-rânea, situam-se no mais elevado grau do sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de di-reito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados inter-nacionais. Quem ignora, afinal, que o primeiro princípio histori-camente afirmado do direito constitucional, a saber, a competência do Judiciário para declarar a inconstitucionalidade de leis e outros atos normativos, foi consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Marbury v. Madison (1803), não obstante o completo silêncio a esse respeito da Constituição norte-americana?

6.– A segunda razão pela qual a Corte Interamericana de Di-reitos Humanos julgou inválida a lei de anistia de 1976, tal  como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, é que tal lei repre-sentou uma auto-anistia; vale dizer, os principais responsáveis pelo cometimento dos citados crimes lograram, antes de se afastarem do poder, proclamar-se imunes a toda persecução penal.

Pois bem, no julgamento da ADPF nº 153 no Supremo Tri-bunal Federal, o Ministro relator e outro Ministro que o acompa-nhou afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não poderia ser con-cebida como uma auto-anistia, mas sim como uma anistia bilateral entre governantes e governados. Ou seja, segundo essa original exegese, torturadores e torturados, reunidos em uma espécie de contrato particular de intercâmbio de prestações, teriam resolvido anistiar-se reciprocamente... Essas surpreendentes declarações de voto foram reforçadas pela tese de que a lei de anistia de 1979 re-presentou um “acordo histórico”.

Frise-se, desde logo, a repulsiva imoralidade de um pacto dessa natureza, se é que ele realmente existiu: o respeito mais e-lementar à dignidade humana impede que a impunidade dos auto-res de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios interessados.
Na verdade, o propalado "acordo de anistia” dos crimes con-tra a humanidade praticados pelos agentes da repressão não passou de uma reles conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição. Qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo, quem estaria do ou-tro lado? Porventura, as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram chamados a negociar esse a-cordo? O povo brasileiro, como titular da soberania nacional, foi convocado a referendá-lo?

    O mais escandaloso de toda essa tese do acordo político é que, após a promulgação da Lei nº 6.683, em 28 de agosto de 1979, certos agentes militares continuaram a desenvolver impu-nemente sua atividade terrorista. Em 1980, registraram-se no país 23 (vinte e três) atentados a bomba, entre os quais o que vitimou, na sede do Conselho Federal da OAB, a secretária da presidência, Dª Lyda Monteiro da Silva. Em 1981, houve mais 10 (dez) aten-tados, notadamente o do Riocentro, cujos responsáveis, ambos o-ficiais do Exército, foram considerados, no inquérito policial mili-tar aberto em consequência, vítimas e não autores! Pois bem, para escândalo geral tal inquérito foi arquivado pela Justiça Militar com fundamento na própria Lei nº 6.683, cujo art. 1º fixou, como encerramento do lapso temporal da anistia, a data de 15 de agosto de 1979.

É deplorável constatar que o nosso país é o único na América Latina a continuar sustentando a validade dessa auto-anistia. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Peru, na Colômbia e re-centemente na Guatemala, o Poder Judiciário decidiu pela sua flagrante inconstitucionalidade.

7.– Repita-se: pelo disposto no art. 68, primeira alínea, da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Brasil tem o dever de dar integral cumprimento à sentença condenatória da Corte In-teramericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros v. Brasil (Guerrilha do Araguaia). Se não o fizer, o nosso país terá denunciado informalmente a Convenção Americana de Direitos Humanos, colocando-se como um país fora da lei no plano inter-nacional.
Eis porque a eminente Deputada Luiza Erundina apresentou a esta Câmara este Projeto de Lei nº 573, de 2011.

Objeto da propositura legislativa, como já frisado, não é a revogação, total ou parcial, da Lei nº 6.683, de 1979, mas sim a declaração, pelo próprio Poder Legislativo, do sentido autêntico do disposto no art. 1º, § 1º daquele diploma legal, concernente à expressão “crimes conexos”.
Acoplada à de "crimes políticos", tal expressão não podia aplicar-se aos delitos comuns praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores ao regime militar. E isto, pela boa e simples razão, unanimemente proclamada pela doutrina penal, tanto aqui quanto alhures, de que a conexão criminal pres-supõe uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das diversas práticas delituosas. Ora, ninguém em sã consciência pode sustentar que os agentes militares e civis do regime político então vigente atuassem em harmonia política com os que foram por eles assassinados ou torturados.

Em outras palavras, a conexão criminal supõe a existência de um delito principal e de um ou mais delitos secundários, vincu-lados àquele. No caso, como dispõe a Lei nº 6.683, delito principal objeto da anistia é o crime político, praticado de modo efetivo ou presumido por oponentes ao regime militar. Por acaso é cabível sustentar que os agentes públicos defensores desse regime, ao praticarem atos de violenta repressão contra os chamados subver-sivos, cometeram da mesma forma crimes políticos e não crimes comuns?

    No entanto, haverá talvez quem sustente, à míngua de melhor argumento, ter havido conexão delitiva no sentido do disposto no art. 76, I in fine do Código de Processo Penal. Ora, tal norma não é de direito material, mas de simples competência. Ao determinar sejam processados e julgados no mesmo juízo criminal os crimes praticados por várias pessoas, umas contra as outras, ela é obviamente inaplicável naquele contexto histórico, pois os autores de crimes políticos atuaram contra a ordem política então vigente, e não de modo pessoal contra os agentes públicos que vieram a torturá-los e mata-los.

8.– Sustentam, no entanto, os Srs. Relatores do Projeto de Lei nº 573, de 2011, tanto nesta douta Comissão, quanto na de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, que, a se reconhecer a inaplicabilidade da lei de anistia aos crimes praticados pelos agen-tes públicos contra oponentes ao regime militar, estaríamos fa-zendo reatroagir a lei penal, com violação do princípio fundamen-tal do nullum crimen sine praevia lege, inscrito no art. 5º, XL da Constituição Federal.
A fim de reforçar essa tese, o Sr. Relator do projeto de lei na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional invocou o argumento apresentado pelo Ministro Relator da ação de descum-primento de preceito fundamental nº 153, no Supremo Tribunal Federal, segundo o qual a Lei nº 6.683, de 1979, seria uma “lei-provimento” ou “lei-medida” (tradução da expressão alemã Massnahmegesetz), cujos efeitos são imediatos e irreversíveis.

Vejamos.

    Há muito a ciência jurídica estabeleceu a distinção entre lei e provimento administrativo (Verwaltungsmassnahme, na terminologia alemã); a primeira geral e abstrata, o segundo concreto e específico. Com base nessa distinção tradicional, passou-se a denominar Massnahmegesetze as normas com forma de lei, mas de conteúdo idêntico ao de provimentos administrativos. Por exemplo, a lei que determina a construção de uma barragem, ou que fixa um termo final para os trabalhos de modernização de ferrovias.

    Mas quem não percebe a enorme contradição de considerar  uma lei de anistia criminal, considerada por alguns um “acordo histórico”, como simples provimento administrativo, destinado a resolver questões de ordem meramente factual? Alguém porven-tura ignora que, se a lei de anistia teve efeitos imediatos e irrever-síveis, ela não pode aplicar-se a crimes continuados (como o de ocultação de cadáver)?

Na verdade, a afirmação de ambos os citados Relatores, de que o projeto de lei em exame configura uma violação do princípio da anterioridade da lei penal na definição de crimes, é despida de todo fundamento, pois ela parte de um pressuposto errôneo. O dispositivo constitucional invocado, como ninguém ignora, pres-supõe a existência de duas normas penais válidas e eficazes a se sucederem no tempo, uma revogando ou alterando a outra. Ora, o Projeto de Lei nº 573, de 2011, como expressamente dito e acen-tuado, não tem por objetivo revogar ou alterar a lei de anistia de 1979, mas sim dar-lhe uma interpretação que a torne válida e não nula, como decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ou seja, o mesmo Poder que editou a norma vem, em seguida, a explicitar-lhe o verdadeiro sentido. Estamos, portanto, perante um só e mesmo diploma legal.

Aliás, a aceitar-se o argumento de que haveria no caso, em violação de um princípio fundamental da Constituição, a retroati-vidade de uma lei penal, todas as decisões judiciais declaratórias de nulidade de uma norma lei somente teriam efeito a partir do seu trânsito em julgado; o que representaria aberta contradição com o fato de uma norma legal julgada nula ser ineficaz desde a sua origem. Ora, reitere-se, a disposição do art. 1º, § 1º da lei de anistia de 1979, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, foi declarada radicalmente nula pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

9.– Criticando ainda o Projeto de Lei em exame, os Srs. Re-latores, nesta Comissão e na de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, argúem que inexistia no direito pátrio, à época da pro-mulgação da lei de anistia, não só o crime de tortura, como tam-pouco o crime de desaparecimento forçado.
Em relação à tortura, o que se ignora, ao assim argumentar, é que o art. 350, III do Código Penal, promulgado em 1940, define como exercício arbitrário ou abuso de poder o ato de um fun-cionário, que “submete pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”.

Tal crime consta, também, com a mesma definição do Código Penal, da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965 (promulgada, portanto, durante o regime militar, e ainda em vigor!), em seu art. 4º, alínea b. Pergunta-se: – Por acaso, o agente público denunciado pela prática de tais atos escaparia da condenação penal, alegando que na definição do delito não consta a palavra tortura?

O mesmo se diga no tocante ao desaparecimento forçado. Sem dúvida, não havia tal crime em nosso ordenamento jurídico à época do regime castrense, e ele continua a inexistir até hoje. Mas quem ignora que o art. 148 do Código Penal, em vigor desde 1940, define como crime de seqüestro, o ato de “privar alguém de sua liberdade”; assim como o art. 211 do mesmo Código define o crime de destruição, subtração ou ocultação de cadáver?

10.– Finalmente, outro argumento, apresentado pelo Exmo. Sr. Relator do Projeto de Lei em exame nesta Comissão, é de que o crime de tortura está sujeito à prescrição penal.

Lamento assinalar uma flagrante contradição nas razões assim expendidas pelo ilustre Relator em seu Parecer. Se de um lado Sua Excelência lembra que o crime de tortura não existia à época do regime militar, por outro lado afirma que tal crime é sujeito à prescrição. Afinal, ou há uma coisa, ou outra; não é possível sustentar ambas ao mesmo tempo.

Examinemos, no entanto, em si mesmo o argumento da prescrição do crime de tortura.
Observo, preliminarmente, que ao fazer tal afirmação Sua Excelência parece aceitar, a contrario sensu, a tese de que os de-mais crimes nefandos praticados à época pelos agentes militares e policiais contra oponentes políticos não são sujeitos à prescrição.

Em 26 de novembro de 1968, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pela Resolução nº 2.391 (XXIII), aprovou o texto de uma Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, ainda que tais delitos não sejam tipificados pelas leis internas dos Estados onde foram perpetrados.

Foi por essa e outras razões, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu, em sua citada sentença condenatória do Brasil, serem “inadmissíveis as disposições de anistia, as dis-posições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de res-ponsabilidade, as quais pretendam impedir a investigação e puni-ção dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos”.

De qualquer maneira, não posso deixar de frisar que tal ar-gumento do ilustre Relator é despiciendo no caso. A prescrição, quer no campo cível quer no criminal, constitui matéria a ser de-cidida, caso a caso, não pelo Poder Legislativo, mas exclusiva-mente pelo Judiciário.

11.– Concluo, declarando que estamos a vivenciar agora, uma vez mais, um episódio histórico revelador da duplicidade de comportamento de nossos grupos dominantes, em matéria de di-reitos humanos. No teatro político, os componentes de nossa oli-garquia sempre fizeram questão de representar perante a platéia, sobretudo internacional, o papel de personagens respeitadores dos direitos humanos. Nos bastidores, porém, mal escondem a sua brutalidade selvagem, pisoteando tais direitos, quando contrários aos seus interesses pessoais.

Lembro, a esse respeito, que no início de nossa vida de país independente fomos pressionados pela Inglaterra para abolir o trá-fico de escravos africanos. Como então dependíamos comercial-mente daquela potência internacional, celebramos com ela um tra-tado com esse objetivo, o qual exigia que promulgássemos uma lei nacional proibida do tráfico infame. Tal lei foi promulgada em 7 de novembro de 1831, declarando livres “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora”, com a submissão a processo penal, não só do armador, do comandante e dos membros da tripulação do navio, mas também dos seus finan-ciadores e auxiliares em terra, bem como de todos os compradores de africanos doravante contrabandeados em território brasileiro.
Pois bem, como se tratava simplesmente de uma lei “para inglês ver”, até a efetiva abolição do tráfico negreiro, em 1850, ingressaram no Brasil nada menos do que 750.000 escravos afri-canos, sem que ninguém, absolutamente, tivesse sido submetido a processo penal.

Repetimos agora, vergonhosamente, o mesmo jogo duplo com respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual nosso país é Estado-Parte. Como se está a ver, ela só vigora para a platéia externa, segundo o protocolo diplomático. Aqui dentro, sua aplicação é suspensa, toda vez que ela entra em choque com os interesses dos grupos componentes de nossa oligarquia, como é o caso do cumprimento da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros v. Brasil, a respeito da interpretação a ser dada à lei de anistia de 1979.

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