14/11/2013 - Wagner Machado - Portal Terra
Quando em junho do ano passado a deputada federal Luiza
Erundina oficializou seu nome como candidata a vice do petista Fernando
Haddad na eleição para a prefeitura de São Paulo, parecia que enfim
chegara o apaziguamento da relação dela com o PT, partido com o qual
manteve uma relação tão intensa quanto conturbada desde sua fundação, em
1980, até 1998, quando anuncia sua desfiliação da sigla e ingressa no
PSB, onde está até hoje. Porém, a paz nem chegou a completar uma semana.
Após a publicação de uma foto em
que Haddad e seu padrinho político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, posam aos sorrisos e abraços com o ex-governador e ex-prefeito
Paulo Maluf (PP) para selar o apoio deste à campanha petista, Erundina retira seu nome da chapa.
Ela já estava resignada à aliança com o PP. Mas era por demais
simbólico aquele encontro na casa de Maluf, registrado em uma imagem
insinuando um alto grau de intimidade e compadrio entre a dupla
petista e aquele que a personificação da direita e do conservadorismo
político paulista, o maior inimigo histórico de Erundina, a quem ela
derrotou na emblemática eleição municipal que completa 25 anos amanhã.
O dia 15 de novembro de 1988 ficou marcado como a data
do primeiro grande triunfo eleitoral do PT: a conquista da prefeitura de
São Paulo e de mais duas capitais: Porto Alegre (RS), com Olívio Dutra,
e Vitória (ES), com Victor Buaiz. Feito histórico do qual Erundina foi a
estrela mais brilhante, dados o tamanho e a importância da cidade que a
elegeu.
Paraibana de Uiraúna e assistente social por formação,
Luiza Erundina de Sousa começou sua trajetória política ainda no seu
Estado natal militando na Pastoral da Terra, órgão de apoio e
organização dos camponeses ligado à igreja católica. Perseguida pela
ditadura militar, transfere-se para São Paulo em 1970 e começa a
trabalhar como professora universitária e como assistente social
concursada na prefeitura. “Fui trabalhar nas favelas e nos cortiços. Aí
eu me dei conta de que a luta era a mesma: a luta no Nordeste era pela
questão da terra no campo, que no fundo era pela reforma agrária, e na
cidade a luta era pela terra para moradia. A organização dos favelados, a
luta em defesa da população de cortiços e, ao mesmo tempo, a luta
contra o regime”, disse ao Terra. Ela conta de
quando foi com outros colegas da prefeitura prestar apoio ao movimento
de populações de favelas, que protestava na Secretaria de Bem Estar
Social do Município, e foram todos cercados pela polícia na sede da
entidade. “Ficamos lá a noite inteira, e eles ameaçando e querendo tirar
a população para que ficássemos só nos, os assistentes sociais do
órgão, que era para nos enquadrar, nos prender, nos punir, nos agredir”,
recorda. “E a população não quis sair porque sabia que se saísse
deixaria o flanco aberto para que nós fôssemos presos.”
Encontro com Lula e a fundação do PT
A ligação com a população periférica de São Paulo sempre foi o maior vínculo político de Erundina, que em 1979 lidera a tomada da direção do Congresso Nacional de Assistentes Sociais (que era alinhada à ditadura), ocasião em que conhece o líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, já então o maior expoente da luta dos operários do ABC. O grupo de Erundina convida Lula e outros líderes de trabalhadores, todos cassados e destituídos pelo governo da direção sindical de suas categorias, a comporem a comissão de honra do congresso, que era ocupada por governantes ligados ao regime militar, entre eles Paulo Maluf. “Foi quando a gente conheceu o Lula e ele fez discurso final do congresso. Lembro que naquela época, nós, assistentes sociais, estávamos muito chateados porque numa plenária da greve dos metalúrgicos na Vila Euclides (em São Bernardo do Campo), eles fizeram um discurso denunciando assistentes sociais que haviam sido contratados pela Volkswagen para ajudar os trabalhadores a furar a greve. E o Lula fez uma denúncia pública numa assembleia do sindicato. A categoria era considerada inimiga dos trabalhadores. Só que nesse discurso, ele tendo sido convidado por nós, dizia: ‘Agora eu descobri que existem que estão do lado do patrão, e assistentes sociais que estão do lado dos trabalhadores’”, recorda Erundina.
Pouco tempo depois, ela recebe um convite de Lula para
participar da fundação de um partido. “Foi quando eu me inseri no
processo de construção do Partido dos Trabalhadores e sou uma das
fundadoras. Aceitei de pronto porque a gente reconhecia o papel que o
Lula tinha, que o movimento sindical estava tendo, a liderança que ele
tinha”, relata Erundina. “Veio a lei da anistia em 1979 e em 80 nasceu o
PT. Em 82, o PT já participou de sua primeira eleição e eu me elegi
vereadora. Elegemos cinco. Evidentemente o Lula nos elegeu.”
No pleito municipal de 1985, Erundina concorreu a
vice-prefeita de São Paulo na chapa encabeçada por Eduardo Suplicy, mas o
eleito foi o ex-presidente Jânio Quadros (PTB). No ano seguinte é
eleita deputada constituinte. Em 1988, após uma disputa interna com
Plínio Arruda Sampaio, Erundina é escolhida a candidata do PT ao governo
municipal. “Foi a primeira prévia que um partido político fez. E foi um
momento em que eu e o Plínio fomos para a TV debater. Tivemos dezenas
de plenárias, de debates e o partido se dividiu: a força mais à
esquerda, que era a força de base, me apoiando; e a força mais moderada
apoiando o Plínio. Eu propunha os conselhos populares com autonomia e
com independência na gestão, o Plínio achava que isso era uma proposta
que lembrava os sovietes, que nós queríamos fazer o socialismo na
prefeitura. Foi uma prévia muito politizada, os debates eram todos em
torno de propostas, de ideias”, avalia.
Foi a primeira prévia que um partido político fez. E
foi um momento em que eu e o Plínio fomos para a TV debater. Tivemos
dezenas de plenárias, de debates e o partido se dividiu: a força mais à
esquerda, que era a força de base, me apoiando; e a força mais moderada
apoiando o Plínio. Eu propunha os conselhos populares com autonomia e
com independência na gestão, o Plínio achava que isso era uma proposta
que lembrava os sovietes, que nós queríamos fazer o socialismo na
prefeitura
A grande vitória
Erundina não esconde o orgulho de ter chegado à prefeitura de São Paulo derrotando Maluf. Também não esconde a decepção com os dirigentes do partido, que não prestaram apoio, segundo ela, nem na campanha, nem na administração. Erundina afirma que sua escolha como candidata contrariou os principais dirigentes do PT, como Lula, José Dirceu e Rui Falcão. Quem a apoiava eram as correntes mais à esquerda, lideradas por José Genoino, Florestan Fernandes e Paulo Freire, entre outros. “Quando eu ganhei a prévia, um dos companheiros do PT disse: ‘Você comprometeu o projeto das esquerdas’. O projeto das esquerdas na avaliação deles era um paulista, um quatrocentão, um homem digno, um homem honesto, um homem que tinha uma história também de luta democrática: Plínio Arruda Sampaio. Perseguido pela ditadura, mas era um perfil mais assimilável para o paulistano do que uma nordestina, uma mulher do PT, e com esse perfil de militância na luta por moradia na cidade, pela reforma agrária no campo. Imagina se os paulistanos iriam me eleger!”
Em 1988 o PT era um partido pequeno e visto como
radical, as campanhas eleitorais dependiam da militância voluntária dos
membros e simpatizantes do partido. As altíssimas cifras e o
financiamento de grandes empresas eram impensáveis – e inaceitáveis –
naquela época. A campanha de Luiza Erundina (que tinha como adversários
principais, além de Maluf pelo PDS, João Oswaldo Leiva – candidato do
PMDB apoiado por Oréstes Quércia – e José Serra, pelo PSDB) foi calcada
em uma aguerrida militância na rua que compensou a falta de dinheiro e
de estrutura. “O único carro que eu tinha na campanha era uma perua do
motorista que trabalha até hoje comigo. Ele cedeu ou vendeu pro partido
esse carro velho, que não marcava o combustível. Como o dinheiro era
pouco, o tanque não vivia cheio, é evidente, então ficava sempre a perua
parando em algum lugar e eu tinha que tomar um táxi correndo para poder
chegar ao evento. O caminhãozinho que carregava o som era tão velho,
tão velho, que quando tinha uma subidazinha para chegar ao local onde se
ia fazer o comício, ele não dava conta. Foi uma epopeia”, conta, com
uma espécie de saudosismo.
Para Erundina, além da força entusiasmada da militância,
os principais fatores que resultaram na vitória inesperada foram a
conjuntura, o contexto de anseio social por mudanças, e o fato de que os
adversários subestimaram sua candidatura. “Eu era cachorro morto. Quem é
que imaginava que eu pudesse ter chance?”, indaga, emocionando-se com o
feito histórico de 25 anos atrás. "Eu, Luiza Erundina, uma deputada no
primeiro ano de mandato, batalhando contra os despejos de favelas, tem
até uma foto (aponta para um dos diversos quadros na parede de seu
escritório em São Paulo): eu apanhando da polícia ali."
“Na véspera da eleição eu cheguei em terceiro lugar (nas
pesquisas), e foi minha sorte, porque se eles tivessem de alguma forma
percebido que eu tinha alguma chance, eles teriam me inviabilizado de
pronto na campanha, o que eles tentaram fazer depois, no governo”,
ataca. “Foi uma surpresa. O Maluf já estava com seu secretariado
escolhido, ele estava com uma margem grande do segundo colocado, que nem
era eu, era o Leiva. Cheguei no dia da eleição em terceiro lugar com
18%, e ele lá na frente.”
As críticas ao descaso do PT com sua vitória e seu
governo são constantes durante as recordações de Erundina. “Primeiro,
não acreditavam na viabilidade (da candidatura), e segundo, acharam que
eu não ia dar conta, que seria um desastre, pro partido seria ruim. E se
enganaram né, porque aí eu me arroguei o direito de escolher o primeiro
escalão do governo: nomes como Paulo Freire, Marilena Chauí, Paul
Singer, Paulo Sandroni, Amir Khair, Ermínia Maricatto, Eduardo Jorge”,
enumera, orgulhosa da equipe de notáveis que reuniu.
Propaganda eleitoral de Erundina
Percalços na administração
A falta de apoio dentro do próprio partido foi apenas o primeiro revés que Erundina enfrentaria na administração da capital paulista. “Governamos quatro anos com minoria na Câmara. Por quê? Porque para fazer maioria teria que ter reeditado as práticas fisiológicas, clientelistas e de subordinação de um poder a outro. O PT no plano institucional é essa política que eles defendem hoje, do ponto de vista de compor: ‘como vai governar sem ter maioria?’. Nem pensavam em governar porque não acreditavam, nem se preocuparam muito com isso, achavam que não ia ganhar. Aí depois que ganhou, ganhou. E aí? Aí nós fizemos um governo popular mesmo, que é o que eu acho que o Lula e a Dilma deveriam fazer”, critica. “Se para ter aliança com o Congresso tiver que fazer concessão de princípios, concessões éticas, concessões de diversos compromissos históricos, deixa então que a direita faça que ela faz melhor do que nós.”
Se para ter aliança com o Congresso tiver que fazer
concessão de princípios, concessões éticas, concessões de diversos
compromissos históricos, deixa então que a direita faça que ela faz
melhor do que nós
A deputada continua a listar as adversidades que teve
à frente da administração paulistana citando a oposição política
sistemática que enfrentou. De acordo com ela, o Tribunal de Contas do
Município, cujos conselheiros haviam sido nomeados “pelo Maluf e pela
direita que andou pela prefeitura em toda a história política desta
cidade”, virou um instrumento de luta político contra a gestão petista.
“O Tribunal de Contas rejeitou todas as minhas contas. “Até ali, nunca
tinham rejeitado contas de prefeito nenhum, as minhas rejeitaram as dos
quatro anos”, reclama. “Na primeira que rejeitaram, eles queriam que a
Câmara cassasse meu mandato. Aí a gente foi para a porta da Câmara, com a
população mobilizada. A população das favelas, dos cortiços, da
periferia, ocupou por quatro dias. Acamparam na frente da Câmara e
arrancaram a decisão de não cassar meu mandato”, relata, sempre contente
ao falar de sua sustentação nas camadas populares da sociedade. “O país
inteiro se mobilizou, recebi apoio até no Exterior, porque senão eu
teria sido cassada no primeiro ano do meu mandato por conta
disso: porque a Câmara estava se sentindo incomodada de não ter as suas
negociatas com o Poder Executivo.” A imprensa, segundo ela, também era
um adversário sistemático.
Autocrítica
Apesar de todos os obstáculos, Erundina considera que fez uma boa gestão e que uma de suas principais marcas foi a inversão de prioridades, focando os investimentos e as políticas públicos na área social. “Mais de 50% do orçamento durante os quatro anos foi para a saúde, para a educação, para a habitação popular, para saneamento básico, canalização de córregos, pavimentação da cidade, a coleta seletiva foi nosso governo que introduziu”, exemplifica. “Não fizemos grandes obras: fizemos sete hospitais. E grandes hospitais, com dezenas de concursos públicos para preencher essas vagas, dezenas de novas unidades básicas de saúde, dezenas de novas escolas, dezenas de novas creches”, afirma a ex-prefeita. “Um dos grandes acertos foi o método de gestão, democrática, participativa, controlada pela sociedade, com efetiva participação dos movimentos sociais populares.”
Quanto ao que hoje considera terem sido erros de sua
gestão, Erundina acredita que deveria se esforçar mais para manter uma
relação melhor com o Legislativo e deveria ter uma política de
comunicação mais inteligente – por princípios, a prefeitura não investia
em publicidade. “Radicalizei demais, poderia ter sido mais aberta, mas
sem fazer concessões”, pontua.
A experiência de Erundina à frente da prefeitura de São
Paulo não teve continuidade (à época não havia reeleição). O candidato
do PT na eleição seguinte, em 1992, foi Eduardo Suplicy, que perdeu para
Paulo Maluf. “O Suplicy não se comportou como um candidato da situação,
não fez nenhum uso no horário eleitoral ou nos comícios das políticas
que estavam dando certo no nosso governo, nenhuma delas. Era como se ele
não fosse governo, como se fosse oposição”, critica. “O PT não
reconhece aquela experiência como sendo uma experiência do partido, que
realmente não era só do partido, era das esquerdas”, avalia. “O Lula
tanto não reconhecia o meu governo que não ficou pra minha posse. Isso
não é ressentimento não, não fez falta. Mas pra dizer do simbolismo
disso: ele preferiu ir para a posse do Olívio Dutra lá em Porto Alegre
do que ficar na posse da militante da cidade mais importante do país”,
queixa-se a parlamentar.
O Lula tanto não reconhecia o meu governo que não
ficou pra minha posse. Isso não é ressentimento não, não fez falta. Mas
pra dizer do simbolismo disso: ele preferiu ir para a posse do Olívio
Dutra lá em Porto Alegre do que ficar na posse da militante da cidade
mais importante do país.
Erundina tentaria voltar à prefeitura de São Paulo em
1996 ainda pelo PT. Foi para o segundo turno, mas perdeu para Celso
Pitta, candidato lançado por Maluf. As críticas internas que sofreu pela
derrota neste pleito foram a gota d’água na sua sempre turbulenta
relação com o partido. “Atribuíram a mim a responsabilidade pela derrota
quando o partido não investiu nada, não ajudou nada no segundo turno”,
disse. Após uma moção de repúdio a ela aprovada em um encontro municipal
do PT em São Paulo, Erundina rompe com a sigla e se filia ao PSB.
Se quando pertencia às fileiras petistas ela não se
submetia às decisões do partido quando as consideravam distante dos
ideais populares que o fundaram, fora dele sempre foi uma voz crítica de
esquerda ao processo de institucionalização do PT. “O projeto do PT se
resumiu a Lula presidente uma vez, Lula presidente duas vezes, Lula
elegendo outra pessoa, a Dilma pretendendo se eleger de novo, e o PT
acabou. Aquele PT que me elegeu prefeita desta cidade, a primavera da
política brasileira e da juventude que queria fazer política envelheceu.
É um partido da ordem, é um partido de um governo de coalizão, que tem
uma base de A a Z, que fez concessões de princípios, concessões éticas,
então eu saí por isso”, explica.
Embora reconheça alguns avanços sociais nas gestões do
PT à frente da Presidência da República, Erundina tem um arsenal pesado
de críticas. “Os governos do PT não contribuíram pra fazer avançar o
poder popular. Eu sou socialista, do socialismo democrático, libertário.
E lamentavelmente os nossos governos – são nossos governos, ajudei a
eleger o Lula nas duas vezes, ajudei a eleger a Dilma, por um certo
tempo dei sustentação a esses governos na Câmara, não em relação a tudo
porque não fui pra lá pra fazer concessões daquilo que eu acredito –
foram governos como outro qualquer”, avalia a deputada. “Um governo de
coalizão fazendo negócios, fazendo acordos, fazendo concessões. É um
governo bem sucedido nessa forma, mas mudou a cultura política? Mudou as
relações de poder entre o povo e o Estado? Não mudou. E eu acho que
para a gente dizer: ‘olha, nós fomos uma força política pra transformar o
poder no país, o papel do Estado, construir cidadania política’,
lamentavelmente essas experiências não contribuíram nesse sentido. Muito
pelo contrário.”
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